Saltar para o conteúdo principal

Publicidade

Publicidade

 
 
  Siga a Folha de S.Paulo no Twitter
07/09/2010 - 02h30

França é capaz de converter os povos que conquista, diz cientista político

Publicidade

PATRICK WEIL
DO "MONDE"

Em 8 de março de 1872, logo após a vitória da Prússia sobre a França na guerra de 1870-1871, Francis Lieber, professor de origem prussiana da Universidade Columbia, de Nova York, escreveu a seu amigo Charles Sumner, senador anti-escravagista e francófilo havia muito tempo: "Recebi de Berlim um apelo para levantar fundos entre os alemães dos EUA para ajudar com a edificação de uma fundação Bismarck na Universidade de Estrasburgo. Está claro que o governo alemão está muito interessado em fazer de Estrasburgo uma universidade de primeiro nível, o que não deixa de significar alguma coisa. Os franceses a relegaram ao descaso. Mas eles relegaram ao descaso e continuam a relegar ao descaso tudo, exceto Paris. Retorno a minha velha questão: o que é que faz com que os franceses sejam o único povo capaz de converter os povos que conquistam? Estes não recebem benefício algum da França. A despeito disso, eles se manifestam em favor da França. Nem os alemães, nem os ingleses, nem os americanos conseguem isso. Qual é a razão?"

Sumner já havia respondido a pergunta: ele considerava que a igualdade perante a lei, princípio contido na Declaração francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, era o mais importante dos direitos, e ele quis introduzi-lo na Constituição americana. O que explicaria a ligação do morador de Estrasburgo com a França seria, portanto, que, sendo francês, ele era igual ao parisiense, apesar de distante dele no plano cultural --devido à língua germânica e à religião, com frequência protestante--, enquanto que, alemão desde 1871, ele se tornou inferior ao prussiano de Berlim, na medida em que a Alsácia-Mosela tinha status de colônia no novo império alemão.

Cada Estado-nação se refere a uma geografia, a uma história e ao sentimento de compartilhar um destino comum com outros cidadãos, através do elo da nacionalidade. Mas esses elementos comuns glorificados frequentemente conduzem ao nacionalismo mais absurdo. Alguns meses depois de, em 25 de junho de 1940, terem ouvido o marechal Pétain evocar a terra, definida como "a própria pátria" que "não mente", franceses enviados ao serviço de trabalho obrigatório (STO) descobriram, surpresos, que, depois de atravessarem as fronteiras da Bélgica e depois da Alemanha, "é ainda a mesma terra, árvores, vacas, lavouras, rios--nenhum sinal, nenhuma ruptura", ou que as paisagens da Alemanha "são semelhantes às da Dordonha" (Patrice Arnaud).

Os elementos comuns a todos os Estados-nações não determinam os valores e as crenças que, traduzidos nas instituições e nas condutas, simbolizam a especificidade de cada um. Me parece que há quatro "pilares" que constituem um código sociopolítico da França para os franceses e aos olhos do mundo. Produtos de nossa história, eles resistiram a numerosas contestações, a mudanças de governos, de Constituições, de regimes políticos. São ao mesmo tempo uma referência e um programa de ação que sempre precisa ser posto em prática.

Para começar, o princípio de igualdade, que permitia que os habitantes das Províncias conquistadas se identificassem com a França. Transformado e reforçado durante a Revolução, ele está inscrito nos dispositivos importantes do código civil, convertido, por sua perenidade, na Constituição concreta da França. A sucessão dos cidadãos é, por exemplo, fundamentada na igualdade dos filhos --homens e mulheres. Tocqueville via nisso a base da democracia. Em seguida, a língua francesa, língua do Estado desde 1539, foi um instrumento de unificação cultural do reino da França e, depois, da República. Ferramenta de emancipação e de debates, da escola para todos, seu status ao cerne da República das Letras confere uma posição ímpar à cultura e à intelectualidade na França.

Em seguida, a memória positiva da Revolução que compartilhamos com os americanos, mas que nenhum outro povo da Europa possui. Nem a Itália, nem a Espanha, nem a Inglaterra, nem a Alemanha. Não obstante o Terror e outros excessos, a Revolução permanece como referência que se traduz em uma abordagem positiva às mobilizações de massa. A laicidade, por fim, se fundamenta desde 1905 em três princípios: a liberdade de consciência, a separação entre Igreja e Estado e a liberdade de prática de todas as religiões. Desde 1945, ela se impôs como a referência comum de fiéis cada vez mais diversos e de ateus ou agnósticos em número cada vez maior.

Forças e fatores de unificação e de transformação, esses pilares representam a indiferenciação -- assimilação--à qual cada um aspira em certas situações, tanto quanto aspira ao respeito a sua particularidade, em outras. E esses pilares ganharam adesão mais ainda pelo fato de frequentemente terem sido aplicados no reconhecimento dessa diversidade dos franceses, em um equilíbrio que oferece a eles a possibilidade de circular entre identidades compostas.

Sob o Antigo Regime, a igualdade de direitos foi, com frequência, atribuída respeitando a diversidade cultural das províncias vinculadas ao reino da França. Os habitantes da Alsácia, de Flandres ou do Roussillon recorreram a esses direitos para defender seus interesses em conflitos entre particulares. Mas os princípios acabaram por aderir a eles, tornando-se um elemento central de sua identificação com a França (Peter Sahlins).

Mais tarde, sob a 3ª República, a escola "esforçou-se para nos tornar todos iguais" (Mona Ozouf), mas o ensino do francês tolerou a magnificação das pequenas pátrias e o uso da língua regional, que em alguns casos chegou a ser qualificada de materna (Jean-François Chanet). A lei de 1905 permite que judeus e protestantes desenvolvam uma nova diversidade, independente das estruturas oficiais antigas. Após 1918, a Alsácia-Mosela conservou seu estatuto antigo, e foi encontrado um acordo com o Vaticano. A questão da escola particular foi resolvida após 1945.

Essa mesma abordagem de assimilação jurídica e aceitação da diversidade é adotada quando, no final do século 19, a França se tornou um país de imigração. Por uma questão de igualdade, os filhos de imigrados adquiriam a nacionalidade francesa automaticamente. Mas a dupla nacionalidade também era aceita. A questão foi a debate, contudo, em 1922. Desse modo, alemães fixados na Alsácia antes de 1914 poderiam tornar-se franceses e continuar a ser alemães. O Parlamento considerou que se deve "admitir, até prova em contrário, que uma pessoa que tenha conseguido a nacionalidade francesa não é suspeita ou perigosa pelo único fato de conservar interesses morais ou pecuniários no país que deixou". Os dirigentes da França conheciam seus princípios unificadores e tinham aprendido a aplicá-los com flexibilidade e pragmatismo. É esse o espírito que está fazendo falta hoje.

Um pretexto evocado com frequência é a novidade do tempo atual, que seria a do "enfraquecimento de nossa identidade histórica" de Estado-nação, da confusão entre memória e história, da emergência das identidades de grupo (Pierre Nora) ou da presença de populações imigradas que se recusariam a integrar-se. É verdade que vivemos uma mundialização sem precedentes das trocas, tanto que a França se tornou o país da Europa que possui o maior número de budistas e de judeus, mas, sobretudo, de muçulmanos e de ateus ou agnósticos.

Essa globalização do mundo teria podido assinalar o fim dos valores morais, que, afinal, não são senão construções sociais duráveis apenas pelo fato de serem praticadas e porque se acredita nelas. Ora, nesta França mais e mais diversa, a adesão ao princípio da laicidade, por exemplo, é muito elevada, e o sentimento de pertencimento a uma mesma nação é mais forte que em qualquer outra parte da Europa.

Na primavera de 2006, alguns meses após as revoltas do outono de 2005, dois anos após a proibição de símbolos religiosos ostensivos nas escolas públicas, uma pesquisa de um instituto americano, o Centro de Pesquisas Pew, revelou que, no Reino Unido, apenas 7% dos muçulmanos britânicos se sentem em primeiro lugar britânicos (enquanto 82% se sentem em primeiro lugar muçulmanos). Na França, 42% dos muçulmanos se sentem em primeiro lugar franceses, contra 46% em primeiro lugar muçulmanos, em um país em que metade dos muçulmanos não é de nacionalidade francesa. É na França que o grau de opinião favorável de cristãos e muçulmanos em relação uns aos outros é o mais alto. E a França é o único país da Europa em que a maioria dos muçulmanos --74%-- tem opinião favorável dos judeus. Esses resultados seriam confirmados um ano mais tarde por uma pesquisa "Financial Times"/Louis Harris, feita nos Estados Unidos e nos cinco grandes países europeus: a França é o único país em que uma maioria (69%) afirma ter um ou vários amigos muçulmanos (contra 38% dos britânicos e 28% dos americanos).

Não se trata, aqui, de negar as tensões. Elas se originam primeiramente da recusa --muito minoritária-- de integração no que poderíamos chamar de "comunitarismo", quando a primazia é dada às leis de um grupo sobre as leis da República. Mas os atritos são mais numerosos e "normais" a partir do momento em que os recém-chegados a um país são confrontados com uma cultura e uma história que não são suas, de maneira alguma. Eles precisam se adaptar; às vezes reivindicam um reconhecimento cultural. Mas os valores de nossa República são universais e, por isso mesmo, atraentes. Eles provocam uma busca legítima por igualdade de tratamento, busca essa que às vezes obriga a ajustes que devem levar em conta tradição, igualdade e diversidade.

Foi esse tipo de processo seguido em 2003 pela comissão Stasi em matéria de laicidade: de um lado, a proibição dos símbolos religiosos ostensivos no espaço particular da escola, onde sua instrumentalização perturbaria a liberdade de consciência de outros; de outro, a atribuição ao islã dos mesmos direitos concedidos às outras religiões (criação de capelanias no exército, nas prisões ou os hospitais, projeto de um feriado para cada religião, a ser escolhido por ela).

O mesmo tipo de trabalho de inclusão em nossa memória nacional foi reivindicado por nossos compatriotas do ultramar. Chegados à metrópole no final dos anos 1950, se surpreenderam ao constatar que a cidadania francesa não era garantia contra o racismo e as discriminações e que a história da qual tinham surgido não era conhecida nem ensinada. A lei Taubira, em 2001, veio lembrar que a escravidão foi um crime contra a humanidade.

Acontece que, desde 2007, as escolhas feitas nos níveis mais altos do Estado vêm confundindo tudo e acentuando as tensões: trata-se do questionamento direto de determinados pilares de nossa República, e depois, diante do fracasso, a opção por semear a confusão, por meio de uma aplicação mais estreita desses princípios. Com relação à laicidade, por exemplo, Nicolas Sarkozy primeiramente se desculpou junto ao papa pela lei de 1905, depois louvou o padre ou o crente, em detrimento do professor ou do ateu, contrariando a neutralidade imposta no Estado e o respeito igual por todas as opções espirituais. A amplitude das reações o levou a dar marcha-a-ré. Em seguida, em lugar de aplicar os princípios da laicidade com inteligência, ele travou um combate público contra a burca. Esta é uma prisão móvel que choca. Mas sua proibição nas ruas será na melhor das hipóteses inaplicável; na pior, ela favorecerá os fundamentalistas que deveria supostamente combater, se eles vencerem a disputa diante na Corte Europeia dos Direitos Humanos. O governo está consciente disso. Que importa se muitos cidadãos de cultura muçulmana, obrigados permanentemente a justificar-se e a exprimir sua rejeição das práticas extremas, sentem mal-estar? Sarkozy optou por conservar esse assunto no centro da atenção pública, porque ele lhe vale o apoio da maioria da opinião.

A suspeita de presença ilegítima instilou-se contra nossos compatriotas de origem africana ou mediterrânea, por meio de medidas que se sucedem: à base da criação do Ministério da Imigração e da Identidade Nacional ou da vontade presidencial, felizmente censurada, de selecionar os imigrantes de acordo com sua origem geográfica, ela foi exemplificada nas restrições anunciadas à concessão de nacionalidade aos "franceses de origem estrangeira".

Essa suspeita de usurpação pesa também sobre a lei Taubira, que não para de precisar justificar sua existência. No entanto, a abolição da escravidão faz parte de uma história compartilhada: ela foi conquistada pelos escravos, mas também pela mobilização de filantropos e abolicionistas. Ela nos uniu em torno da República, que, a partir de 1848, reconheceu a escravidão como crime de "lesa-humanidade" e a puniu como tal. No caso da colonização, o trabalho de memória e história compartilhadas, mais complexo, ainda resta a fazer. Mas não estamos mais nos tempos de Renan, quando o esquecimento das divergências passadas era visto como necessário para a construção da nação. Cidadãos adultos podem ser confrontados com interpretações diferentes da história nacional, sem perderem o sentimento de pertencerem ao mesmo projeto --pelo contrário.

A França não precisa temer as identificações com uma região, com o país de origem ou com uma religião: na maioria dos casos, elas convivem com o pertencimento a uma nação e com a adesão aos valores históricos desta. O risco está muito mais na exacerbação e dramatização das diferenças, ou na interpretação das reivindicações de reconhecimento como sendo recusas de pertencimento.

Recordemo-nos do que respondeu Emmanuel Levinas em 1968, quando foi interrogado na revista "Esprit" sobre o risco de lealdade dupla que a solidariedade manifestada pelos judeus da França com relação a Israel em 1967 imporia à nação: "Verdade e destino... não fazem parte das categorias políticas e nacionais. Elas não ameaçam a lealdade à França mais do que ameaçam outras aventuras espirituais... Ser judeu plenamente consciente, cristão plenamente consciente, é encontrar-se sempre em situação desajeitada no Ser. Também você, amigo muçulmano, meu inimigo sem ódio da Guerra dos Seis Dias! Mas é a aventuras como estas, vividas por seus cidadãos, que um grande Estado moderno --ou seja, servidor da humanidade_ deve sua grandeza, sua atenção ao presente e sua presença no mundo." A tarefa que cabe aos dirigentes do país é, antes de mais nada, encarnar esses valores universais e fazê-los viver.

Patrick Weil é doutor em ciência política e diretor de pesquisas do CNRS (Centro Nacional de Pesquisas Científicas) e trabalha com a história da imigração na França. Em 2003 ele participou da comissão Stasi sobre a laicidade e foi membro do Alto Conselho para a Integração. Publicou "La France et ses étrangers" (Calmann-Lévy, 1991) e "Qu'est-ce qu'être français?" (Grasset, 2002).

Tradução de Clara Allain

 

Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página