Saltar para o conteúdo principal

Publicidade

Publicidade

 
 
  Siga a Folha de S.Paulo no Twitter
15/09/2010 - 02h31

Cuba quer legalizar mercado informal para cobrar impostos, diz especialista americana que esteve com Fidel

Publicidade

CLAUDIA ANTUNES
DO RIO

A declaração de Fidel Castro de que o modelo cubano não funciona mais para o país só surpreendeu quem não acompanha o debate sobre reformas econômicas na ilha e as medidas anunciadas desde que seu irmão Raúl assumiu formalmente o poder, há mais de dois anos.

Quem afirma é a especialista Julia Sweig, do Council on Foreign Relations, que esteve cinco vezes com o ex-dirigente cubano, em Havana, entre o final de agosto e o início deste mês. Ela acompanhou a visita do jornalista americano Jeffrey Goldberg, a quem Fidel deu a declaração, e estendeu sua permanência em Cuba por uma semana para encontrar também outras autoridades do governo, diplomatas, analistas e cidadãos comuns.

"A diferença é que Fidel antes falava em 'aperfeiçoar' [o sistema], enquanto Raúl fala em 'evoluir'", disse Sweig em entrevista à Folha. "Mas de fato ele estava apenas ratificando a realidade, o que se confirma com as medidas anunciadas nesta semana [a demissão de 500 mil funcionários públicos]."

Autora de "Cuba: What Everyone Needs to Know" (Cuba, o que todo mundo precisa saber) e "Inside the Cuban Revolution" (Dentro da Revolução Cubana), Sweig afirma que uma das metas principais das reformas _ que incluem o recente anúncio de demissão de 500 mil funcionários públicos e a autorização para que estrangeiros comprem propriedades na ilha_ é formalizar o mercado negro, de modo que o Estado obtenha recursos com a cobrança de impostos.

Sweig afirma que encontrou Fidel "a 1.000%", conta que ele se apresenta como "líder histórico" e acredita que, por sua vivência histórica, ele busca desempenhar o papel de "despertador de consciências".

Para ela, ao convidar o jornalista americano, Fidel estava interessado em comunicar seu temor de que Barack Obama seja arrastado a um conflito no Oriente Médio que pode degenerar em guerra nuclear e sua mensagem ao iraniano Mahmoud Ahmadinejad de que deve respeitar a história do povo judeu e o Estado de Israel. "Acho que ele está ciente dos limites, mas também das possibilidades de que pode atrair atenção para as coisas com que se preocupa."

Abaixo, a íntegra da entrevista, feita por telefone.

*

FOLHA - Qual foi o objetivo de Fidel ao convidar o jornalista Jeffrey Goldberg para conversar?
JULIA SWEIG - Em julho, em discurso à Assembleia Nacional, Fidel falou da preocupação de que a crise no Oriente Médio [em relação ao programa nuclear do Irã] se transforme num conflito militar que escale para uma guerra nuclear. Disse que pretendia usar toda plataforma que pudesse para levar essa mensagem ao mundo. Duas semanas depois, Goldberg publicou sua matéria de capa na "Atlantic", sobre o mesmo tema. Acho que isso reforçou o senso de perigo que Fidel já tinha.

Fidel é uma pessoa muito interessada, lê muito e gosta de conversar não apenas com pessoas com quem concorda, mas também de quem discorda. Imagino que vê Goldberg como uma pessoa que pensa diferente dele. Então, em parte, foi apenas curiosidade intelectual dele.

Mas, claro, as entrevistas trouxeram à tona coisas que Castro estava interessado em comunicar: sua mensagem a [Mahmoud] Ahmadinejad para respeitar a história judaica, não negar o Holocausto, respeitar o direito de Israel de existir; sua mensagem indireta aos judeus americanos, de que admira o povo judeu; sua preocupação de que Barack Obama seja arrastado a uma escalada militar.

Mas ele considera que com isso pode ajudar a evitar uma guerra?
Acho que ele provavelmente é realista, sabe que tem uma capacidade limitada de influenciar todos os diferentes atores [nessa questão]. Mas no passado ele viu sua voz fazer diferença em questões internacionais e tenta fazer isso de novo.

Eu assisti a um discurso que ele fez na Universidade de Havana, na abertura do ano letivo, e ele se colocava numa posição de despertador de consciências, de conscientizador. Acho que está ciente dos limites, mas também das possibilidades de que pode atrair atenção para as coisas com que se preocupa.

Quantos encontros vocês tiveram?
Eu já planejava viajar para Cuba naquela semana, como faço uma ou duas vezes por ano. Apenas antecipei minha viagem de terça para o sábado [28 de agosto] quando Goldberg foi convidado. Vimos Fidel no domingo, numa entrevista seguida de almoço; no dia seguinte, no aquário; na terça, para a despedida de Goldberg. Eu fiquei e entrevistei Fidel sobre Cuba nos anos 60 --que é tema do meu primeiro livro, mas eu não o havia entrevistado sobre isso. Depois assisti ao discurso na universidade, e foi quando me despedi dele.

Há quanto tempo vocês não se encontravam e qual foi a sua impressão?
Eu não o via desde 2001. Minha impressão é que ele está num estado mental excelente, a 1.000% intelectualmente e também muito relaxado, muito interessado, falante e inquisitivo.

Na segunda-feira, você disse que a declaração de Fidel de que o modelo cubano não funciona mais tinha sido sobrevalorizada. Por quê?
Para a imprensa que não tem prestado atenção ao que acontece em Cuba, a declaração, vinda de Fidel Castro, pareceu muito radical. Mas a razão pela qual disse que ela foi sobrevalorizada é que é uma constatação do óbvio. Todo mundo em Cuba, dentro e fora do governo, está discutindo por que o modelo cubano não funciona e como ele precisa mudar. Isso tem estado no topo da agenda de Raúl Castro desde que ele assumiu, foi levado à discussão pública quando Fidel ainda era presidente. A diferença é que Fidel falava em "aperfeiçoar" o sistema e Raúl fala em "evoluir".

A maioria das pessoas só presta atenção em Cuba quando Fidel Castro fala, porque parte do princípio de que ele é a única pessoa em Cuba. Mas de fato ele estava apenas ratificando a realidade, o que se confirma com as medidas anunciadas nesta semana [a demissão de funcionários].

Segundo Goldberg, Fidel fez a declaração quando vocês falavam de América Latina e ele perguntou se o modelo cubano ainda poderia ser exportado.
Estávamos falando de muitas coisas. Foi durante o almoço, não era uma entrevista formal. Na minha interpretação, Fidel disse depois que havia sido mal interpretado porque queria indicar que, apesar de o modelo cubano estar mudando, isso não significa que estão importando o capitalismo [segundo o modelo] americano. Ele quis esclarecer, tendo em vista o processo interno.

O quanto de consenso há sobre as reformas e o quão longe eles querem ir?
Há um amplo consenso de que muita coisa precisa mudar, de que os cubanos devem ter espaço para criar suas próprias oportunidades, e de que reduzir o tamanho do Estado é muito importante, não apenas para que os cubanos possam criar renda para si, dirigindo negócios, mas também para que o Estado possa reestruturar suas fontes de arrecadação.

O Estado tem enormes despesas, com saúde, educação, infraestrutura, mas não recolhe impostos para financiá-las. A mudança é no sentido de reduzir a folha de pagamento do Estado, permitir às pessoas ter pequenos negócios, num modelo de maior escala do que o iniciado nos anos 90 [depois do fim da União Soviética], de modo que possam ser criados impostos sobre vendas e sobre as folhas salariais [da iniciativa privada], gerando renda para financiar o Orçamento do Estado.

Esse ajuste não vai ser automático, em termos da cultura política do país. Os cubanos não gostam de pagar impostos. Ironicamente, eles são muito libertários, acham que qualquer taxa imposta pelo Estado é um absurdo.

Acho que o ajuste mais fácil vai ser trazer à tona e legalizar a economia subterrânea, o mercado negro, toda atividade que já acontece em Cuba. Em suma, a descriminalização do mercado e mesmo da competição na produção e na venda de bens e serviços.

Os cubanos estão tentando replicar o modelo chinês, de liberalização econômica sem contrapartida política?
Nos anos 80 e 90, os cubanos, principalmente por iniciativa de Raúl, enviaram analistas e acadêmicos para estudar outras economias e transições na América do Sul, na Ásia, na antigo bloco soviético. Claro que abrir a economia com a manutenção do controle político é exatamente o que observamos, mas não acho que seja visto em Cuba como importação do modelo chinês ou do vietnamita.

A China é gigantesca e Cuba e pequena; a China fica do outro lado do mundo e Cuba a 180 quilômetros dos EUA, com 12% de sua população vivendo nos EUA. É inevitável a integração com a economia do hemisfério, incluindo a americana, com o tempo. O que vai se desenvolver é um sistema cubano, híbrido.

Como as coisas que Fidel tem falado repercutem no povo cubano?
Não posso falar pelo povo cubano. Mas Fidel é visto como um ícone e o fato de que ele está bem, de que se recuperou da doença, é muito bem recebido. Quando estive na universidade, havia cerca de 10 mil estudantes lá, e ele começou dizendo que há 65 anos naquele dia tinha começado seus estudos universitários e que isso tinha moldado seu destino, que nunca pensou que estaria ali de novo.

Havia um sentimento incrível no ar e algumas pessoas estavam chorando, porque era comovente. Mas também acho que há uma interrogação sobre qual o papel dele agora e daqui por diante. E acho que isso é exatamente o que estamos vendo se desenrolar. Acho que seu papel é de historiador, de conscientizador. Raúl não faz mobilizações de massa, não faz discursos longos. Mas é o estilo de Fidel. Acho que ele vai continuar a manter essa fronteira [separado da gestão da Estado]. Ele se chama de "líder histórico", foi como se apresentou. Um estadista veterano, como outros ex-presidentes.

Depois do expurgo, há dois anos, de dirigentes que eram considerados sucessores dos Castro, como fica essa questão? Mesmo o Congresso do PC, previsto para o ano passado foi adiado.
Eles não estão esperando o congresso acontecer para implementar as reformas. Mas convocaram uma conferência do partido, para este semestre, e o objetivo é indicar pessoas para posições-chave.

Quanto à sucessão, é difícil responder. Os candidatos óbvios foram expurgados, mas há pessoas sem o perfil público de Carlos Lage [ex-premiê] e Felipe Pérez Roque [ex-chanceler] que estão comandando ministérios e fazem parte de uma geração de 40, 50 anos. Raúl Castro está cumprindo um mandato de cinco anos, que começou em 2008, o que lhe dá mais três anos. Minha impressão é que, mesmo parecendo que as coisas se movem devagar nesse campo, há uma certa urgência de estabelecer as bases da sucessão, mas eu não sei quem essas pessoas são.

A recente liberação de presos políticos e as reformas econômica podem acelerar o fim do embargo americano?
Cuba anunciou recentemente que estrangeiros podem comprar propriedades lá. Mas a lei dos EUA impede os cidadãos americanos de investir na ilha.

A política de embargo, totalmente obsoleta e ineficiente, vai mudar por causa dos fatos recentes? Não imediatamente, mas acho que Washington está acordando para o fato de que Cuba está mudando e que está à margem dessas mudanças.

Especialmente diante de uma América Latina muito diferente, em relação à qual os EUA agem de maneira atabalhoada, ainda não sabem como comportar, isso pode levantar uma discussão aqui [em Washington] sobre os efeitos positivos de ter uma política diferente para Cuba, não apenas pela relação bilateral, mas pela posição americana na região.

Você acha que Fidel teria, ao convidar vocês, o objetivo de buscar uma aproximação com os EUA?
Não tenho ideia. É muito difícil interpretar a motivação. Raúl Castro é o responsável pelos negócios do Estado, a política externa e interna. Mas claro que, quando Fidel Castro se permitiu ser entrevistado por um grande jornalista americano, isso teve o efeito de criar uma semana de noticiário intenso, atraindo a atenção de Washington para a relação com Cuba.

Você disse que os EUA devem rever as bases de sua política para Cuba, deixando de lado programas de mudança do regime, de impor seu modelo à ilha. Acha que isso pode acontecer?
Não, não vejo isso acontecendo. O governo Obama tem muitas outras prioridades e infelizmente está só começando a se dar conta do quão contraproducentes e provocativos esses programas de mudança de regime [aprovados durante o governo Bush] são.

Alguns dizem que, com as últimas entrevistas que deu, lamentando a perseguição a homossexuais e dizendo que hoje não teria aconselhado a Rússia a confrontar os EUA, durante a Crise dos Mísseis [1962], está tentando limpar o registro histórico de momentos mais polêmicos de sua vida. Você concorda?
Não nesses termos. Veja, ele tem nas mãos muito tempo, que não esperava ter. Então está repassando sua história, falando dela de uma maneira reflexiva. Ele tem 84 anos. Quantos anos tinha durante a Crise dos Mísseis? Cinquenta anos depois, não é ilógico que possa repensar esse episódio, se pôr no sapato de Barack Obama agora. O que acho que ele está dizendo é que pessoas racionais podem fazer escolhas irracionais no calor do momento.

Na universidade, ele disse que, se soubesse que [Boris] Yeltsin [1931-2007] chegaria ao poder [e apressado o fim da URSS], ele não teria participado tanto em favor da União Soviética daquele tipo de confrontação da Guerra Fria. Para nós, ele disse que, sabendo o que sabe agora, teria agido de modo diferente. Então ele está revisitando sua história, e não vejo nada de errado nisso. Acho lógico que ele, depois de quase ter morrido, faça isso.

 

Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página