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14/11/2010 - 02h30

"Silveira resgatou a 'política externa independente', com as limitações do momento", diz Amorim

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CLAUDIA ANTUNES
DO RIO

Leia abaixo o depoimento do chanceler Celso Amorim, em entrevista à Folha, sobre Antônio Azeredo da Silveira, chanceler de Ernesto Geisel (1974-1979), cuja última entrevista está sendo publicada em livro. Na época de Silveira, Amorim trabalhou na OEA (Organização dos Estados Americanos) e na assessoria de Planejamento do Itamaraty.

"Num momento muito difícil da história do Brasil, Silveira representa um resgate da 'política externa independente' que havia se firmado nos governos Jânio Quadros [1961] e João Goulart [1961-1964] e que foi abruptamente cortada quando houve o golpe militar. Não quero dizer que não tenha havido elementos importantes em outros ministros, por exemplo o próprio [Mário] Gibson Barbosa [1969-1974] fez um esboço de política africana que teve um mérito. Mas Silveira adotou uma linha política em que retomou em vários temas diretrizes que inspiraram a 'política externa independente', naturalmente adaptada ao momento e com as limitações do momento.

Por exemplo, houve o reconhecimento [da independência] de Angola, um fato lembrado até hoje por onde você passa. Foi uma obra que envolveu o embaixador Ovídio Melo [que chefiava a missão em Luanda], o embaixador Ítalo Zappa [então chefe do Departamento de África]. Houve o reconhecimento da República Popular da China, uma aproximação muito grande com os países árabes.

Claro que houve limitações, que o governo da época impunha, como no caso de Cuba. Ainda assim, houve uma atitude corajosa, que eu testemunhei como jovem secretário na OEA [Organização dos Estados Americanos], em uma reunião de consultas sob o amparo do Tiar (Tratado Interamericano de Assistência Recíproca). Nessa reunião o Brasil se absteve numa resolução que propunha o fim das sanções. É verdade que na OEA a abstenção conta como voto contra, porque é necessário um certo número de votos positivos. Mas, no lado simbólico, o fato de o Brasil em pleno governo militar ter se abstido não deixou de ser um passo.

O ministro Silveira deixou uma marca de estadista na política externa, valendo-se de circunstâncias da época _é preciso ver a oportunidade. A crise do petróleo facilitou a aproximação com os árabes e o presidente Geisel tinha interesse na questão petrolífera, por ter sido presidente da Petrobras. Ele soube usar isso de maneira positiva, de modo que o Brasil, que tinha ficado com uma política externa muito acanhada nos primeiros anos do regime militar, voltou a ter uma presença maior, uma atuação mais ampla, menos cerceada por dogmas políticos. Ele fala muito do não alinhamento automático, e era tão pouco automático que não era alinhado nem aos Não Alinhados. Foi um momento criativo, que também enfrentou dificuldades. Algumas só puderam ser resolvidas mais tarde, como o problema de Itaipu [o acordo com a Argentina sobre a construção da represa só veio no governo Figueiredo].

O mundo de hoje é muito complexo, tem outras coisas a serem levadas em conta. [Ver identidade entre as políticas externas de Geisel e de Lula] seria uma coisa simplificadora. Mas, se você for considerar historicamente, incluindo a 'política externa independente' e o 'pragmatismo responsável', a política externa do presidente Lula retoma alguns temas de afirmação de uma posição internacional do Brasil, uma visão ampla dos interesses brasileiros, não limitados a esta ou aquela potência. Há pontos de contato, sobretudo no tipo de ânimo da política, mas os problemas se modificaram. Naquela época não houve uma ênfase na integração sul-americana, que hoje é uma matriz central da política externa.

A política externa atual é indelevelmente marcada pela figura do presidente Lula e pela eleição do presidente Lula. É muito difícil não ver nisso um salto. Você pode criticar ou elogiar, mas ela não é uma mera continuidade [da política do governo FHC]. Silveira costumava dizer que o Brasil pode abdicar de tudo, menos da sua grandeza. Ele não tinha uma visão de um Brasil pequeno, limitado, que não pode fazer nada sem pedir licença. Isso é um lado com o qual eu me identifico muito e acho que é possível ver um ponto de contato. Agora, sobre quem é herdeiro [de Silveira], eu não tenho reivindicação."

*

Leia abaixo o depoimento do ministro de Assuntos Estratégicos, Samuel Pinheiro Guimarães, sobre Antônio Azeredo da Silveira, chanceler do governo Geisel (1974-1979), cuja última entrevista está sendo publicada em livro. Pinheiro Guimarães, que foi secretário-geral do Itamaraty entre 2003 e 2009, deu o depoimento por escrito.

"Azeredo da Silveira, chanceler de Geisel, foi responsável por radical atualização e diversificação da política externa.

Na África, o Brasil abandonou o apoio ao colonialismo português, reconheceu a independência de Angola, Cabo Verde e Guiné-Bissau e assumiu posição contrária ao apartheid.

Na Ásia, o Brasil encerrou longo período de apoio a Taiwan, estabeleceu relações diplomáticas com a República Popular da China e reconheceu o princípio de uma só China. O Brasil inaugurou um ciclo de cooperação com o Japão que resultou em grandes investimentos.
Na Europa, Geisel visitou França, Inglaterra e Alemanha, com a qual assinamos o acordo que deu início ao programa nuclear, com efetiva transferência de tecnologia. Diante das pressões americanas, contrárias à autonomia brasileira na área de informática e na área nuclear, o Brasil afirmou sua soberania, o que levou à denúncia do acordo militar Brasil-Estados Unidos.

No Oriente Próximo, o Brasil, em decorrência da crise do petróleo, desenvolveu intensa aproximação com os países árabes e reiterou o apoio à causa palestina. Na América do Sul, foi assinado o acordo para a construção de Itaipu, e para o fornecimento de gás boliviano, além do Tratado de Cooperação Amazônica. No âmbito das Nações Unidas, o Brasil apoiou a construção de uma nova ordem econômica internacional e destacou-se na luta pela descolonização."

*

Leia abaixo o depoimento do ex-chanceler (1997-2001) Luiz Felipe Lampreia sobre Antônio Azeredo da Silveira, chanceler do governo Geisel (1974-1979), cuja última entrevista está sendo publicada em livro. Lampreia trabalhou com Silveira na missão em Genebra, no final dos anos 60, e como assessor econômico e porta-voz do Itamaraty sob Geisel.

"Eu talvez tenha sido a pessoa mais próxima do Silveira porque comecei a trabalhar com ele nos anos 60, quando ele era chefe do Departamento de Administração. Ele foi de uma ousadia tremenda em sua entrada no circuito mais diplomático mesmo, quando organizou uma conferência de chanceleres da OEA (Organização dos Estados Americanos) que aconteceria no Rio em 1966. Se opôs à posição do governo brasileiro, que no período Castelo Branco (1964-1967) era a favor de uma força interamericana permanente, nos moldes da que interveio na República Dominicana em 1965 [com apoio do Brasil]. O Silveira saiu pela América Latina afora, visitando os países que ele sabia que eram contra México, Argentina, Colômbia, Uruguai e organizou-se uma frente de resistência. No fim, o assunto nem foi colocado na reunião.

A política externa, pelo menos no período republicano, sempre foi basicamente uma aliança com os EUA. A partir do final dos anos 70, não houve exatamente uma ruptura, mas uma tomada de distância relativa _a não adesão ao Tratado de Não Proliferação [1968] é uma mostra, a declaração de soberania sobre as 200 milhas marítimas (1970) é outra. Daí por diante isso virou um paradigma novo, não houve mais um retorno a uma posição que se chamava de alinhamento automático.
Houve uma coincidência de intenções entre Silveira e [o presidente Ernesto] Geisel. Quando Geisel foi indicado [à Presidência, pelos militares], ele disse [a Silveira]: 'Eu o escolhi porque você é a pessoa que vai fazer a política externa que eu quero implementar'. Estava certíssimo disso, inclusive talvez até fosse mais categórico no distanciamento dos EUA do que o próprio Silveira.

Silveira tinha uma postura muito desconfiada em relação à Argentina. Ele serviu duas vezes em Buenos Aires e desse período terá ficado alguma amargura. Ele achava que o caso de Itaipu [os argentinos se opuseram inicialmente à construção da represa] era decisivo porque o establishment militar argentino e de modo geral a diplomacia argentina queriam impedir Itaipu. No fundo queriam que o Brasil não crescesse tanto. Naquela época, havia um grande enrijecimento dos militares que estavam no poder num país e no outro, e talvez também das próprias burocracias estatais. É um fato completamente diferente do que existe hoje.

Silveira é considerado por alguns uma espécie de predecessor de uma política externa de esquerda, como a foi que foi praticada durante o atual governo. Ele não era isso, não era uma pessoa que pudesse ser categorizada. Ele tinha uma visão muito forte do interesse nacional, uma visão do Estado. Não tinha um conteúdo ideológico, certamente não creio que ele se curvasse à nacionalização da Petrobras na Bolívia sem nem sequer protestar ou coisas do gênero.

Era um homem muito pragmático. Não era antiamericano, tanto que ele estabeleceu com [o secretário de Estado Henry Kissinger], enquanto pôde, uma relação que considerava muito importante para o Brasil. Ele achava que os EUA eram capazes de dar ao Brasil um peso e uma consideração internacional que o Brasil nunca tinha tido. Depois desembocou no desastre do [Jimmy] Carter [1977-1981], sobretudo na área nuclear [os EUA pressionaram a Alemanha, que acabou não transferindo ao Brasil tecnologia de enriquecimento de urânio].

Tanto a questão nuclear como a dos direitos humanos foram determinantes [para o esfriamento das relações com os EUA sob Carter]. Acho que o tema nuclear veio em primeiro, claramente, porque a primeira iniciativa foi mandar para cá o Warren Christopher [subsecretário de Estado] para colocar a coisa de maneira dura, e o Silveira também reagiu durissimamente. Depois veio a questão de direitos humanos, mas sobretudo de democracia, de abertura. Isso causou muito mal estar no Geisel porque ele achava que jogava no colo da linha dura e criava uma dificuldade para ele no processo que estava manejando para superar o [Sílvio] Frota [ministro do Exército, que se opunha à abertura]."

 

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