Saltar para o conteúdo principal

Publicidade

Publicidade

 
 
  Siga a Folha de S.Paulo no Twitter
30/11/2010 - 14h19

Haiti precisa de pacto de Moncloa para deixar de ser refém da elite política, diz OEA

Publicidade

FLÁVIA MARREIRO
ENVIADA ESPECIAL A PORTO PRÍNCIPE (HAITI)

Ricardo Seitenfus, representante da OEA (Organização dos Estados Americanos) para o Haiti, está no país desde janeiro de 2009. Foi um dos principais responsáveis pela preparação das eleições gerais deste domingo.

Após um dia de votação atribulado por episódios de violência e denúncias de fraude, ele defende o processo --mais "ordeiro" que o de 2006-- e ironiza o protesto dos candidatos opositores que pediam a anulação da eleição.

"De certa forma, a política haitiana inova. É a primeira vez na história da democracia que quem está prestes a conquistar o poder através do voto denuncia o próprio processo. Mas eles se deram conta do erro e estão voltando atrás."

Para o brasileiro, o problema de fundo que provoca a turbulência na vida política haitiana é a falta de um pacto de garantias e liberdades democráticas entre todos os atores políticos, após 30 anos da ditadura Duvalier.

Ele propõe algo nos moldes que fizeram países da América Latina ou a Espanha, com o pacto de Moncloa. "Os atores estão sempre questionando o próprio processo. Por quê? Porque não se colocou de uma forma clara, na saída do regime ditatorial, quais eram as regras do jogo", diz.

"O povo haitiano é refém de uma classe política que não adotou --e para eles é muito fácil não adotar-- as regras do jogo democrático. Enquanto isso não for feito, nós comunidade internacional também seremos reféns."

Leia a entrevista

FOLHA - A votação em Porto Príncipe teve vários episódios de confusão. Vários candidatos falaram em 'fraude massiva'. Como o sr. avalia a jornada eleitoral de ontem?
RICARDO SEITENFUS - O grande desafio das eleições neste ano era logístico e técnico, especialmente depois do terremoto. Desde o ano passado havia uma demanda reprimida por cédulas de identidade, que aqui cumpre o ofício de título de eleitor. Nesse trabalho, feito pela OEA e o Registro Civil e a Agência Nacional de Identificação, nós distribuímos mais de 300 mil identificações nos últimos dez dias.
Com esse trabalho, aumentamos o corpo eleitoral de 4,3 milhões de eleitores para 4,7 milhões.
Nós fizemos um balanço hoje de manhã [nesta segunda] e concluímos que as eleições de 2010, se comparadas às eleições de 2006, ocorreram de forma mais ordeira, com menos problemas. Nós temos um percentual de 6% de locais de votação em que o processo foi interrompido. Mas em 94% correu bem.

FOLHA - Muitos eleitores reclamaram de não encontrar seus nomes na lista de votação...
SEITENFUS - Ocorreu o que ocorre muitas vezes. Muitas delas olham o nome fora da sessão de votação e na hora de votar não os encontra. Houve também muita troca de endereço. E como são eleições distritais, o eleitor tem de votar naquele local, não há voto em trânsito. Houve uma migração grande de pessoas da região por causa do terremoto, e as pessoas não se deram o trabalho de buscar os novos centros.

FOLHA - E quanto ao chamado de anulação das eleições envolvendo os favoritos?
SEITENFUS - É algo que, racionalmente, é pouco compreensível. De certa forma, a política haitiana inova. É a primeira vez, na democracia que vem lá dos tempos da Grécia, que quem está prestes a conquistar o poder através do voto denuncia o próprio processo. Mas eles se deram conta do erro e estão voltando atrás.
Em geral no Haiti há uma contestação pós-resultados, e agora há uma contestação durante a votação...

FOLHA - O cantor e candidato à Presidência Michel Martelly sustenta que foi o protesto liderado por ele no domingo que conseguiu "barrar" a ampla fraude em curso...
SEITENFUS - Há problemas de pessoas que não acharam seus nomes nos centros de votação? Sem dúvida. Mas não pode, do ponto de vista lógico, ter ocorrido o que falaram, de abrir centros de votação e ter urnas cheias de votos. Você viu as urnas, e elas são transparentes. Elas estão vazias às 6h30. Se na história do Haiti houve problemas, sempre foi no final do expediente. É um movimento de contestação sem base nos fatos. Nós temos nossos observadores, que farão seu trabalho.
Tenho a impressão que tudo isso faz parte de uma cultura política que, ao largo de 200 anos, afastou o povo das rédeas da nação. Esse país não tem uma cultura democrática. Uma sucessão de imperadores, quarteladas.
A questão essencial que eu vejo, o grande desafio, para nós todos, mas especialmente para os haitianos, é ter uma experiência inédita: a alternância de poder, liberdade de imprensa, multipartidarismo, respeito ao Estado de direito.
Para nós da OEA, essa só é a condição prévia para fazer da democracia um instrumento para enfrentar os problemas do país. A democracia não é um encontro episódico entre eleitor e eleito. Há uma desrespeito pelos direitos básicos de 90% da população.
É fundamental que o povo haitiano possa falar por si mesmo. E que não seja o clamor de um grupo de pessoas que decidam por eles.

FOLHA - Uma eleição decidida "no grito", para traduzir o que eles dizem aqui, não será aceita?
SEITENFUS - Não será aceito.

FOLHA - Pela comunidade internacional?
SEITENFUS - Pelos próprios haitianos.

FOLHA - Quando 12 dos 18 candidatos pediam a anulação e quando Martelly fez seu massivo protesto, o sr. não pensou que a eleição tinha ido por água abaixo?
SEITENFUS - Não, porque sempre tenho uma preocupação de ver a floresta, e não só árvore. Os jornalistas estrangeiros que estão basicamente em Porto Príncipe viram a manifestação. Mas existem mais nove departamentos e a região ao redor de Porto Príncipe. O que se imaginou antes é que não teríamos eleitores. Dizia-se que não teríamos 10% nem 15%, e sabemos que foi mais que o dobro disso. A participação não se sabe ainda, mas foi de média para boa.O que não podemos perder de vista é esse interesse coletivo.

FOLHA - Críticos de dentro e fora do Haiti dizem que a missão da ONU e a OEA, por exemplo, acabam sendo sustentáculo artificial para um governo como o de René Préval, ou demasiado tolerante com a atuação dele frente a contenda eleitoral. O que sr. diz?
SEITENFUS - A OEA respeita o Estado de direito. A OEA respeita os governantes legitimamente eleitos. Não é mais um ator político. Não podemos desconhecer o governo eleito em 2006. É ele que dialoga com a comunidade internacional em nome do povo haitiano.
Não estamos aqui para dar lições, estamos aqui para acompanhá-los, no ritmo que o povo e o governo haitiano quiserem.
A situação vista pelo exterior por vezes nos intriga. Muitos jornalistas vem ao Haiti buscar o que eles já sabem. O haitiano é valente, uma história única, em condições muito difíceis. E não estamos aqui para enfraquecer um Estado, um governo que já é débil.
Toda ação que objetive enfraquecer ainda mais o governo e as estruturas do Estado haitiano não são do interesse da população. Ser solidário é estar ao lado, não no lugar de alguém. Mesmo que essa seja a posição mais difícil, mesmo que seja alvo de críticas. Nós não queremos atalho.
Para fazer esse caminho mais difícil, é preciso conhecer o Haiti. Amar o país. Porque, caso contrário, o que nós temos é uma posição de rejeição e crítica. Há contradições, há grupos que dominaram por anos a política haitiana. Há certamente o contingente de capacetes azuis, que foram fundamentais neste final de semana, ao mesmo tempo que salta aos olhos que a questão do Haiti não é meramente securitária. É um país que vive de caridade internacional. Essa situação exige muita persistência e muito espírito aberto para entender o uma história anacrônica, que está divorciada daquilo que apregoamos. Tudo aquilo que construímos na América Latina de forma tão difícil.

FOLHA - E o que faltou ao Haiti?
SEITENFUS - O que falta no Haiti, do ponto de vista político, é fazer o que nós fizemos na América Latina, o que a Espanha fez, o que Portugal, a Grécia fizeram. Quando saiu do regime de exceção, assinamos um pacto de liberdades e garantias democráticas entre os atores políticos. Nós vimos ontem que esse pacto não existe.
Ou seja, os atores estão sempre questionando o próprio processo. Por quê? Porque não se colocou de uma forma clara, na saída do regime ditatorial, quais eram as regras do jogo. O único país que não conseguiu estabeleceu esse pacto foi o Haiti. Por isso que todo mundo pode dizer o que quiser.
Por isso um dos meus trabalhos aqui há mais de dois anos é promover a assinatura de um pacto de liberdades e garantias democráticas, como foi o pacto de Moncloa. Promover também a garantia internacional desse pacto, para que os atores saibam qual a posição da comunidade internacional frente a esse pacto. Isso é essencial. Enquanto não fizermos isso, o povo haitiano será refém das lutas político-partidárias de pequenos grupos.
O povo haitiano é refém de uma classe política que não adotou e para eles é muito fácil não adotar as regras do jogo democrático. Enquanto isso não for feito, nós comunidade internacional também seremos reféns.

FOLHA - O sr. falou de 6% dos locais de votação afetados. O Conselho Eleitoral Provisório também vai aplicar um desconto de 6% por conta dos mortos não depurados do registro militar. Esses 12% não podem ser decisivos na hora de decidir que candidato vai ao segundo turno?
SEITENFUS - Isso será uma decisão do Conselho Eleitoral Provisório. Se queremos fortalecer a as instituições no Haiti, temos de respeitar a decisão do CPE. No que eles decidirem, nós estamos aqui para acompanhar. Não é papel da comunidade internacional. Por isso que a comunidade internacional decidiu ontem [domingo] não decidir nada e simplesmente fazer um apelo à calma e à não violência.
Nós nos restringimos a isso.

FOLHA - A campanha de Martelly disse que ele foi procurado por integrantes da ONU, dos países parceiros, que o persuadiam a não convocar manifestações, que esperasse o resultado, porque ele estava ganhando...
SEITENFUS - Temos contatos com todo mundo, mas eu não convenço ninguém.

FOLHA - O país está preparado para um segundo turno? Para a alternância democrática?
SEITENFUS - É o preço da democracia.

FOLHA - Não haverá um atalho como em 2006, quando uma fórmula deu a Préval a maioria simples?
SEITENFUS - Não haverá atalho. Pode ser que não se considere os votos em branco, como já foi feito antes. Mas a vontade dos eleitores será respeitada. É o renascer do país, difícil como todo parto.
O fato de a América Latina ser fiadora do processo democrático do Haiti faz diferença. A grande novidade de 2004 para cá é a capacidade de ação político-moral do América Latina. E isso faz muito bem para a democracia haitiana. Há atores internacionais novos. Faz muito bem que eles tenham no seu horizonte de interlocução outras opções, e não dois ou três países. A presença da América Latina torna mais complexa a solução de buscar atalhos, de desconhecer a vontade popular.

 

Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página