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16/12/2010 - 02h30

EUA fazem "espionagem decadente", diz vice-presidente da Bolívia

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CLAUDIA ANTUNES
DO RIO

Os telegramas da diplomacia dos Estados Unidos vazados pelo site WikiLeaks mostram uma "espionagem decadente", baseada em rumores e "comentários de sobremesa", afirmou o vice-presidente da Bolívia, Álvaro García Linera.

Linera foi sutil ao comentar a conversa em que o ministro da Defesa brasileiro, Nelson Jobim, revelou à Embaixada americana um suposto tumor no nariz do presidente Evo Morales --doença negada pelo governo vizinho.

Rafael Andrade/Folhapress
O vice-presidente boliviano, Álvaro García Linera, falou à Folha sobre o estado atual da diplomacia dos Estados Unidos
O vice-presidente boliviano, Álvaro García Linera, falou à Folha sobre o estado atual da diplomacia dos Estados Unidos

"Isso [os vazamentos] não deve levar a conflitos entre latino-americanos."

Matemático e sociólogo de 48 anos, ele falou à Folha na última segunda-feira, enquanto almoçava uma porção de queijos e suco de laranja num hotel da orla de Copacabana, no meio de ponte-aérea de dez horas (ida e volta) entre La Paz e o Rio, onde fez conferência de lançamento de seu livro "A Potência Plebeia" (editora Boitempo).

Disse que a Bolívia vai colaborar com o Brasil e demais vizinhos para uma ação "implacável" contra o narcotráfico. Mas não permitirá a volta da DEA (agência antidrogas americana), "um mecanismo de controle político dentro do país".

Também exaltou as Forças Armadas bolivianas, admitiu a possibilidade de Morales concorrer em 2014 ao terceiro mandato (o segundo sob a nova Carta) e disse por que acha que seu país vive uma revolução:

"Hoje um indígena pode ser camponês ou operário. Mas também presidente, engenheiro, comandante do Exército ou presidente do Supremo Tribunal. É a mudança mais fundamental desde a morte de Atahualpa [último imperador inca, em 1533]".

INTÉRPRETE

Em quase todo o século 20, a identidade indígena esteve ausente dos cálculos da esquerda na Bolívia.

O país passou por uma Revolução Nacionalista, em 1952, e a vanguarda dos movimentos sociais eram os operários das minas. Os camponeses eram vistos como conservadores.
Álvaro García Linera, professor da Universidade de San Andrés, foi um dos responsáveis por mudar esse pensamento, como mostram seus textos reunidos em "A Potência Plebeia - Ação Coletiva e Identidades Indígenas, Operárias e Populares na Bolívia" (Boitempo).

No prefácio, o argentino Pablo Stefanoni diz que, além de vice-presidente, Linera tem sido o "intérprete" do processo iniciado com a eleição à Presidência do dirigente cocalero Evo Morales, em 2005.

O último texto da coletânea, "O Estado em Transição", foi escrito no calor do confronto entre Morales e os governadores oposicionistas, em 2008.

Linera via a coalizão de agricultores indígenas, pequenos empresários, comerciantes e intelectuais em condições de se impor no "empate catastrófico" com os conservadores.

Em passagem pela guerrilha do Exército Túpac Katari, há mais de 20 anos, Linera já se aproximara do movimento indígena. "Sou um marxista até o osso, indianista, que é a forma de existência de um marxismo vivo em um país em que a maioria é indígena", disse.

Com a decadência da mineração, nos anos 80, esse movimento viria a protagonizar as "guerras" da água (2000) e do gás (2003), essenciais para a mudança do poder em La Paz.

O horizonte de Linera hoje é o que chama de "capitalismo andino-amazônico", articulação entre a economia moderna e a produção comunitária e microempresarial, esta estimulada pelo Estado.

Leia abaixo a íntegra da entrevista:

FOLHA - O sr. colocou na página da Vice-Presidência na internet os telegramas vazados pelo WikiLeaks sobre a Bolívia. Como viu a indiscrição do ministro da Defesa brasileiro sobre uma doença do presidente Morales?
ÁLVARO GARCÍA LINERA- O importante desses documentos é como os governantes norte-americanos elaboram sua espionagem e suas políticas sobre outros países. Tomam decisões a partir de rumores, de comentários de sobremesa, de boatos, muitas vezes de anedotas.
O que surpreende é que uma potência elabore políticas de Estado a partir desse tipo de informação tão imprecisa, tão superficial. E o que chama a atenção é que os informes dos embaixadores e dos membros do Departamento de Estado sejam marcados pelos preconceitos, pela obsessão intervencionista, especialmente em relação a alguns países.
O que posso dizer do que disse o ministro? É anedótico. Está claro que isso era falso, não? Mas o problema não é do ministro, é do informe do embaixador, que converte um comentário superficial em um tema central da política de Estado.

Então isso não é um problema para a relação Brasil-Bolívia?
Não, e nem deve ser. Estes informes revelam que a diplomacia americana é de espionagem, e que é uma espionagem de qualidade muito ruim, decadente.
Isso não deve nos levar a enfrentamentos entre latino-americanos. Deve nos servir como lição de como muitas vezes as coisas que se comentam por brincadeira, de maneira coloquial, podem ter efeitos políticos pela maneira como são usadas, nesse caso pelo Departamento de Estado.
Então é preciso cerrar fileiras na América Latina para sermos mais cautelosos em relação a nossos amigos, entre aspas, do Norte, e reafirmar nossa unidade, nosso trabalho conjunto à margem desses comentários.

A questão da cocaína boliviana que vem para o Brasil foi tema da campanha eleitoral aqui, e mesmo o presidente Morales reconheceu que parte da produção que deveria ser legal está sendo desviada para a produção de drogas. Até que ponto estão dispostos a chegar na cooperação com o governo brasileiro no combate às drogas? A DEA [agência americana antidrogas] poderá voltar à Bolívia?
Nossa política contra as drogas é muito clara. De um lado, respeito ao consumo tradicional, cultural e médico da folha de coca, que, segundo pesquisa recente de cientistas norte-americanos, remonta a 8.000 anos, e não a 3.000, como se pensava. Do outro, a luta implacável, contundente, contra o narcotráfico.
Neste ano, nós erradicamos mais de 8.000 hectares, quando nos pedem [a agência antidrogas da ONU] que erradiquemos 5.000. Aumentamos as penas de prisão e as sanções penais às pessoas vinculadas ao narcotráfico, especialmente aos reincidentes. Nos aproximamos de diferentes governos do mundo para criar um mecanismo de controle de fronteira, sobretudo na Amazônia, que impeça que possam entrar insumos para o narcotráfico e que saiam drogas para outros países. Vamos renovar nossa frota aérea de interceptação para controlar a Amazônia. E solicitamos à União Europeia, ao Brasil e a outros países irmãos que colaborem com a radarização da fronteira amazônica. Estamos dispostos a pagar, e se vem como colaboração será bem vinda.
Há acordos com o governo brasileiro para a transmissão de informação de inteligência, e estamos dispostos a fazer tudo que for necessário e tudo o que a comunidade internacional considere adequado para uma rápida, contundente e agressiva interdição.
Mas não vamos mudar na expulsão da DEA [ocorrida em 2008]. A DEA lutava contra o narcotráfico quando lhe convinha e quando lhe convinha fomentava o narcotráfico. A DEA tinha o controle da estrutura policial, é como se aqui no Brasil a polícia fosse controlada pelos norte-americanos. Nenhum brasileiro aceitaria isso, e acontecia na Bolívia.
A DEA foi também um mecanismo de controle político dentro do país. Isso não podemos aceitar. Qualquer acordo ou convênio para lutar contra o narcotráfico --controle por satélite de cada milímetro da Amazônia, compra de mais aviões, helicópteros, controlar cada caminhão, cada estrada-- vamos fazer sem nenhum problema.
Mas não vamos retroceder na política de respeito aos direitos humanos dos camponeses, e na política de um enfrentamento duro contra o narcotráfico. E temos esperança de que pouco a pouco, como continente, criemos nossa própria DEA, com outro nome.

Há a proposta do Conselho Antidrogas da Unasul [União de Nações Sul-Americanas]. O sr. acredita que, mesmo com a presença dos EUA na Colômbia, que é o centro de produção de cocaína na região, essa ideia possa prosperar?
Sou convencido de que há que pensar a América Latina para os latino-americanos, e nos esquecermos dos Estados Unidos. Não de seu conhecimento, sua ciência e tecnologia, que admiramos, mas ajuda econômica, política, social e militar são os mecanismos de intervenção e de controle do continente e de sua submissão.
É preciso pensar em mecanismos regionais de controle, inteligência, apoio para os desastres, luta contra o narcotráfico. É certo que o faremos muito melhor do que com a presença da DEA. Tanto dinheiro na Colômbia, tanta presença da DEA, e a extensão da produção de cocaína se mantém. Para os norte-americanos, a droga é um pretexto para ter presença, controle político de nossos países. Podemos combater o narcotráfico sem a ação intervencionista e imperial dos EUA. Garanto que os resultados serão mais contundentes.

Um dos temas dos telegramas americanos é a ajuda da Venezuela às Forças Armadas bolivianas. O sr. diz no livro que garantir a fidelidade dos militares ao governo foi fundamental no conflito com os governadores oposicionistas em 2008. A ajuda venezuelana foi importante nesse sentido?
A ajuda da Venezuela e de outros países, à exceção da americana, é de Estado para Estado. A ajuda venezuelana tem a virtude de ser incondicional. Os EUA dizem 'lhes damos US$ 5 milhões, mas têm que fazer isso e aquilo'. Com a Venezuela, decidimos o que fazer com o dinheiro. É o governo da Bolívia que decide se converte os recursos em escola, hospital ou escritórios para melhorar a infraestrutura administrativa dos militares. A ajuda venezuelana nunca foi em armas.
Temos quartéis de 70 anos, com as paredes caindo. Construímos banheiros, dormitórios para os militares, em dois ou três regimentos. Isso não é ajuda militar, há gente que quer superdimensionar esse tema.
Agora, como conseguimos o apoio das Forças Armadas? Não é por esses dormitórios, mas porque o governo do presidente Evo reivindicou como nenhum outro o conceito de soberania do Estado.
Em tempos de globalização, o tema da soberania é a alma das Forças Armadas. Se elas têm alguma função, é garantir a soberania de um país, coisa que havia sido perdida nos últimos 20 anos. Havia oficiais norte-americanos que andavam armados no Chapare [região produtora de coca] e mandavam mais do que a tropa policial e militar.
Houve um escândalo porque recebemos a doação de mísseis terra-ar chineses e na semana seguinte vieram os norte-americanos e os levaram. Para pagar salários dos funcionários públicos, o presidente anterior tinha que ir suplicar ao Fundo Monetário [Internacional].
Isso acabou. Restabelecemos um princípio de soberania a partir da recuperação das funções públicas. Isso é bem visto pelos militares, porque reafirma o fundamento de sua existência, a soberania do Estado como comportamento político e como base material. Um país que não tem dinheiro para pagar seus salários não é soberano, e isso acontecia há cinco anos. Um país que agora pode pagar seus salários está construindo sua soberania, e isso aconteceu conosco, ao nacionalizarmos o gás, o petróleo, a energia elétrica, as telecomunicações e a mineração.
Mas, além disso, o que fizemos foi, na democracia, definir as tarefas constitucionais das Forças Armadas: soberania real, defesa dos recursos naturais. Antes as Forças Armadas estavam apenas nas cidades onde havia operários, nas Províncias onde havia um movimento camponês rebelde e nas minas onde havia operários sublevados. Agora estão em territórios onde o Estado nunca havia chegado, levando saúde, educação, estradas, produção.

Por causa das ditaduras militares, na América Latina sempre houve resistência a atribuir aos militares tarefas internas. Na Bolívia esse trauma foi superado?
É que na Bolívia precisamos das Forças Armadas na construção do desenvolvimento e da presença do Estado. Em um terço do território boliviano não havia escolas, postos de saúde, polícia. Não havia comunicação com essas áreas porque não havia estradas. Quem vai construir isso? As Forças Armadas. São disciplinadas, têm profissionais, e sua missão é defender cada milímetro quadrado do território do país.
As Forças Armadas na Bolívia têm uma relação histórica com os recursos naturais. O primeiro governo que nacionalizou o petróleo na Bolívia, a [americana] Standard Oil, foi um governo militar, do general [David] Toro [1936-1937]. Outro governo militar, do general [Alfredo] Ovando, nacionalizou o gás pela segunda vez em 1969. Outro general construiu a primeira refinaria. O que fizemos foi resgatar essa vertente, nacional e revolucionária, e articulá-la com a defesa do território, o apoio aos povos indígenas, a defesa da Constituição.

Há alguns anos, o sr. definia a situação da Bolívia como um "empate catastrófico" entre dois blocos de poder. Em sua avaliação, a coalizão em torno do presidente Morales conseguiu se impor?
Chamávamos de empate catastrófico o momento em que, diante do projeto de poder econômico, político, cultural e institucional criado pelas elites durante décadas, o povo conseguiu construir um outro projeto, que não era apenas que um indígena fosse presidente _isso era a parte simbólica e sintética de toda uma formação institucional, econômica e política diferente e contraposta à prevalecente.
Em dado momento, havia uma espécie de dualidade de poderes, como diria [o líder soviético Vladimir] Lenin, e ambos os projetos tinham presença territorial, partidários e capacidade de mobilização. Esse empate catastrófico durou quatro anos, de 2003 a 2008.
Em 2008, o projeto de poder dos setores populares, indígenas, camponeses se consolida por meio da construção de uma nova Constituição, das vitórias eleitorais, da prevalência no debate político e cultural, da adesão de outros setores sociais, de classe média e inclusive de classes altas progressistas que aceitam que seu destino será melhor incorporando-se a essa proposta. Se consolida também mediante uma confrontação de forças, que é o ponto de bifurcação.

Com a aprovação em referendo da nova Carta e a reeleição do presidente Morales, agora há tensão dentro do bloco governista, entre a centralização e a reivindicação de autonomia dos indígenas.
Hoje há um novo bloco de poder que conseguiu converter suas propostas em políticas de Estado e sua visão de mundo no eixo ordenador da política e da cultura na Bolívia.
De maneira que hoje qualquer ideia política que surge no debate, no Parlamento, com a oposição, se move em torno do tripé de propostas construídas pelos setores sociais: plurinacionalidade ou igualdade de culturas, desconcentração do poder ou autonomia e industrialização dos recursos naturais. Hoje nenhuma proposta --seja da oposição de extrema direita, de centro ou do setor diminuto que pode ser mais de esquerda-- se move fora desse tripé, mas ao redor dele, em torno desse mundo discursivo.
Quando isso acontece numa sociedade, você tem uma hegemonia no sentido gramsciano [do marxista italiano Antonio Gramsci], isto é de liderança moral, intelectual, organizativa.
Conquistada essa vitória, o que aconteceu? Passamos do momento robespierriano [do líder jacobino francês Maximilien Robespierre], da construção do Estado, para o momento maoísta da construção do Estado, quer dizer, agora vêm as contradições no seio do povo.
Resolvido temporariamente o tema do poder e da hegemonia daqui a alguns anos podem surgir outra oposição, outras ideias, isso é normal, o que acontece agora é que se intensificam os debates no seio do povo, dentro desse tripé. São contradições não antagônicas muito ricas, que mostram que não é um processo estancado, mas dinâmico, que vai continuar se retroalimentando, porque os movimentos sociais continuam sendo os construtores do futuro, não recuaram para sua vida cotidiana, continuam em movimento.

E isso não depende de uma liderança, então? O presidente Morales concorrerá uma nova reeleição?
A Constituição que aprovamos habilita o presidente Evo a um novo período constitucional, diz que um presidente pode ser reeleito uma vez. Essa Constituição foi aprovada em janeiro de 2009 e com ela o presidente Evo foi eleito em janeiro de 2010. Seu primeiro período culminará em janeiro de 2015, mas, pela Constituição, pode ir a uma segunda reeleição.

Mas na época da aprovação da Carta ele disse que não o faria.
O importante é que a Constituição o habilite, e o presidente Evo tem que acatar, como sempre fez, o que os movimentos sociais disserem. Ele foi candidato não porque queria ser presidente, mas porque foi escolhido pelos setores camponeses e indígenas como seu líder. Se esses setores voltarem a tomar em 2014, quando haverá eleições, a decisão de que o presidente Evo deve continuar sendo o líder, o candidato, a Constituição permitiria essa decisão. Mas ainda é muito cedo para saber.

A Petrobras prometeu voltar a investir na Bolívia, depois da nacionalização da refinaria e da mudança no pagamento dos royalties. A estatal brasileira tem cumprido o combinado entre os dois governos?
Sim. Há duas semanas fui visitar os campos San Antonio e San Alberto, onde a Petrobras está trabalhando, e vi grande atividade, novos poços, novas instalações.
A Petrobras afinal entendeu que, assim como o Brasil tem a Petrobras, que é símbolo do país, a Bolívia tem o direito de ter sua YPFB [Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos] como símbolo do país, dona dos recursos. Isso não impede que tenhamos sócios, mas sempre sob controle do Estado, e entregando a maior parte dos lucros ao Estado.

O sr. espera mudança na relação bilateral com a presidente Dilma Rousseff?
Acreditamos que o presidente Lula construiu os pilares do edifício de uma relação entre Estados mutuamente benéfica e de amizade, colaboração e irmandade. Acreditamos que a presidenta Dilma vai construir sobre esses pilares e erguer novos andares. Confiamos nisso e estamos predispostos a trabalhar nessa orientação de benefício mútuo.

Como está a questão da exploração das reservas de lítio bolivianas?
Nós temos no salar de Uyuni e em outros salares do altiplano cerca de 70% das reservas de lítio do mundo [usado na fabricação de baterias, inclusive a dos carros elétricos]. O que a Bolívia fez foi encurtar os passos. As empresas estrangeiras nos diziam que queriam entrar no salar para processar carbonato de lítio, inicialmente, e depois de anos fazer baterias e muito depois automóveis.
Nós nos adiantamos para encontrar a fórmula secreta, digamos, de converter a salmoura em carbonato de lítio, e a encontramos. As empresas nos diziam que demoraríamos cinco anos, nós fizemos em um sem a ajuda de ninguém.
Portanto não entrarão estrangeiros no salar. Nós vamos produzir o carbonato e daí por diante faremos acordos com sócios ou países estrangeiros os que nos oferecerem mais investimentos, mais renda para o Estado, melhor transferência de tecnologia para industrializar o lítio.

Seu trabalho acadêmico tem inspiração marxista e outras pessoas do governo defendiam o socialismo. Mas as medidas econômicas programas de transferência de renda, ampliação do mercado interno, maior controle do Estado sobre recursos naturais são na verdade social-democratas. Por que chamam a isso de revolução?
Sou um marxista até o osso, radical, indianista, que é a forma de existência de um marxismo vivo em um país em que a maioria é indígena. Mas o marxismo não é um receituário nem a construção de um horizonte inventado. É a compreensão do movimento real, e como no que existe se vai configurando uma nova sociedade.
O marxismo é muito realista. Alguns filósofos que se distraem nas universidades fizeram do marxismo uma invenção de categorias sem ligação com a realidade. Mas o marxismo é o estudo da realidade e como a transformamos a partir do que existe, e não do gostaríamos que existisse.
E o que existe na Bolívia é 60% de indígenas, 60% de pobres, zonas desvinculadas da sociedade, sem vínculo mercantil, excessiva concentração de riqueza em poucas mãos estrangeiras e locais, 40% de analfabetos até há quatro anos, gente cuja expectativa de vida era de apenas 50 anos. Gente com grande capacidade organizativa local, mas débil em nível nacional.
O que faz um marxista diante disso? Encontrar no que existe as possibilidades de uma nova sociedade. O socialismo tampouco é um objetivo predefinido. É um movimento real que transforma o existente.
Por que revolução? Porque os indígenas, que são a maioria, até há cinco anos o máximo a que poderiam chegar ou optar era ser camponeses, pedreiros ou comerciantes. Hoje um indígena pode ser camponês ou operário, mas também pode ser presidente, engenheiro, comandante do Exército ou presidente do Tribunal Supremo de Justiça. Isso não acontecia há 500 anos. Essa possibilidade que se abre a uma criança de saber que agora há um mundo que ganhar para eles é a mudança mais fundamental da história da Bolívia desde a morte de Atahualpa.
Na economia, até há cinco anos 40% da riqueza boliviana estava em mãos estrangeiras. O Estado em um país pobre, desarticulado, sem uma burguesia forte só tinha controle sobre 10% a 12% da riqueza. Agora controla 35%. E os estrangeiros não mandam mais na política e na economia. É o Estado, em aliança com setores populares.
Há 10 anos, os que podiam ser políticos, presidentes e tomar decisões eram uma elite aristocrática e branca e hoje quem toma decisões são sindicatos, grêmios, comerciantes, camponeses, operários.

A imprensa boliviana se opõe à nova lei antirracismo, chamada de autoritária. Por que essa resistência?
Eu diria que é uma lei até moderada, mas na Bolívia os meios de comunicação foram o último reduto da oposição. Perderam o governo central e se refugiaram nos partidos, perderam de novo e se refugiaram nas regiões, onde ex-presidentes, ex-ministros, governadores são donos dos meios comunicação, que se transformaram nos últimos cinco anos em fatores políticos, quase partidários, de ação contra o governo.
O governo toma uma medida moderada para garantir um direito humano, que é o da não discriminação, em um país onde esta é um hábito permanente. Fizeram uma campanha gigantesca para que não houvesse nenhum tipo de regulação moderada de seu comportamento. O presidente Evo era acusado de incapaz, de ignorante, de animal, de selvagem, de assassino. Em qualquer país do mundo não se pode dizer isso do presidente, a não ser que seja verdade e se possa provar. Na Bolívia não, era a impunidade absoluta.
Não controlamos a liberdade de opinião, seguem dizendo o que querem. Mas há princípios básicos de não discriminação contra qualquer pessoa, por sua origem étnica, cultural ou condição social e de classe, que devem ser seguidos. O contrário é uma violência.
Armaram uma campanha gigantesca durante um mês, dos noticiários da manhã aos da noite, para coletar assinaturas em defesa da imprensa. Disseram que juntaram 1 milhão de assinaturas. Eu recebi, e havia 34 mil assinaturas, e algumas pessoas haviam assinado não contra a lei, mas em defesa da liberdade de opinião, outras contra um artigo [da lei].
As pessoas entenderam que o governo queria defender um direito, que não discriminem. E na Bolívia hoje todo mundo tem o direito a pensar e a dizer o que quiser, mas não pode discriminar. A oposição continua gritando, a direita propõe suas coisas, critica tudo. É seu direito democrático. O que não podem fazer agora é desvalorizar, punir o outro por sua condição étnica ou classista.

 

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