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20/01/2011 - 07h54

Rivalidade EUA-China marcará década, diz analista

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CLAUDIA ANTUNES
DO RIO

A rivalidade entre China e EUA será o tema dominante desta década, afirma Gideon Rachman, principal colunista de política internacional do jornal britânico "Financial Times". Rachman lança neste mês nos EUA o livro "Sum-Zero Future: American Power in an Age of Anxiety" (futuro de soma zero, o poder americano numa era de ansiedade). Nele, afirma que a busca do equilíbrio de poder marca cada vez mais a relação das duas maiores economias do mundo, enquanto as chances de cooperação entre elas diminuem.

"Mesmo que EUA e China não pretendam ir à guerra ou mesmo ter uma relação de adversários, estão cada vez mais desconfiados um do outro, em parte porque este novo mundo multipolar é muito imprevisível", disse à Folha.

A tese de Rachman foi citada em palestra feita há cinco dias pela secretária de Estado Hillary Clinton, a propósito da visita do líder chinês Hu Jintao. Hillary disse que não cabe "aplicar teorias de soma zero do século 19" à relação EUA-China, mas admitiu "frustrações" do lado americano e "trepidações" causadas pela ascensão da potência asiática.

Abaixo, a íntegra da entrevista.

FOLHA - O fim da hegemonia americana já foi previsto. Nos anos 70 falava-se no Japão como futuro número um. Por que o sr. afirma que desta vez, com a China, é diferente?
GIDEON RACHMAN - A China tem problemas sérios. Mas, nos últimos 30 anos, o país ganhou um ritmo de que não vai parar de uma hora para outra.
É inevitável que sua economia ultrapasse a dos EUA. A população chinesa é quatro vezes a americana, enquanto a do Japão é bem menor. Isso significa que ela só precisa atingir um quarto da renda per capita americana para chegar lá. E, quando isso acontecer, será um momento simbólico, mas também um indicador do poder que vem acumulando.

O sr. parece convencido de que a crise de 2008 determinou essa virada.
A crise de 2008 revelou e acelerou uma tendência que já existia, de emergência de novos poderes econômicos. A China é o caso mais dramático, mas há também Índia, Brasil, Turquia.
Como antes de 2008 os EUA estavam crescendo tanto, e como depois da Guerra Fria haviam se tornado a única superpotência, demorou para que os americanos e o resto do mundo reconhecessem o acontecia.
Na crise, as pessoas se deram conta de que havia uma mudança de poder no mundo e que ela havia sido potencializada com a desaceleração econômica, o crescimento da dívida e o aumento do desemprego nos EUA e na Europa.

O sr. descreveria o mundo atual como multipolar?
Antes de 2008, embora já se falasse num mundo multipolar, essa não era a avaliação majoritária nos EUA. Mesmo agora, pessoas como o ex-presidente George W. Bush ainda acham que os EUA continuarão sendo o número um. Mas não acho que [Barack] Obama concorde, mesmo que não possa dizer abertamente.

O sr. fala numa "época da ansiedade". Isso vale para o mundo todo ou apenas para americanos e europeus?
Sobretudo para americanos e europeus. Eles veem ameaças não apenas ao modo de vida de sua população, com o desemprego e a estagnação dos salários, mas também à sua posição tradicional no mundo.
Saímos do mundo do G7, onde todos eram europeus ou norte-americanos, para o mundo do G20. E isso causa ansiedade no Ocidente.
A rigor, acho que ainda é uma época de otimismo para o poder americano. Mas há a possibilidade de os EUA serem tomados pela ansiedade e a mudança no balanço de poder desestabilizar o mundo.

Apesar de o governo Obama ter uma retórica menos confrontacionista, os EUA ainda têm dificuldade em aceitar que outros países divirjam de suas políticas sem que se tornem seus inimigos. Isso vai mudar?
É difícil generalizar. No caso de Brasil e Turquia [quando da tentativa de mediação com o Irã], acho que a relação dos americanos com os dois países é diferente. Eles estão muito preocupados com as mudanças na Turquia e, não sem razão, acham que há ali um crescimento do antiamericanismo, o que pode ser desestabilizador dado o papel tradicional do país de potência regional pró-ocidental.
A atitude em relação ao Brasil é diferente. Os americanos ficaram muito desapontados, e não gostaram de ver que uma democracia que consideravam um aliado natural estava indo para direção oposta à sua.
A questão é que, no mundo multipolar, os EUA têm que se acostumar com a ideia de que será mais difícil convencer os demais a seguir suas posições. Mas acho que essa situação trará consequências diferenciadas.
Uma é o surgimento de rivalidades concretas com certos países, como no caso da China. Acho que a rivalidade EUA-China será um tema dominante da política internacional nos próximos dez, 20 anos.
A segunda é o caso de países como o Brasil, que não serão vistos como rivais ou inimigos potenciais, mas nos quais a capacidade americana de influir será menor.
Os EUA tentam reforçar alianças no Pacífico para conter a China. Dará resultado?
Não sei se é justo dizer que é uma estratégia de contenção. Acho que há duas estratégias paralelas. Quando Obama assumiu, sua primeira opção foi tentar construir uma relação mais próxima com a China, buscar a cooperação em temas como o clima, tentar convencê-los a ajustar sua moeda.
No último ano, os americanos ficaram cada vez mais alarmados e desiludidos com o comportamento da China, e isso foi acompanhado de um alarme crescente com os investimentos militares chineses.
A atitude de Obama em relação à China mudou, eu não diria para uma política de contenção, mas de construir um colchão de proteção, com o reforço dos laços com Índia, Japão, Coreia do Sul, Vietnã. Mas a China não gosta da ideia de se ver cercada, então há tensão.

O sr. acha que o alarme com o aumento da capacidade militar chinesa é justificado?
Depende. Os americanos estão acostumados com a ideia de que são o poder militar dominante no Pacífico. Não acho que, em longo prazo, os chineses aceitarão essa situação.
Acho improvável que os dois países cheguem à guerra. Mas os chineses acreditam que, com o tempo, seu poder militar deve acompanhar o econômico e os EUA deverão recuar para que o entorno chinês se torne seu quintal, da mesma maneira que os americanos consideram o hemisfério ocidental o seu quintal.
Isso não será um processo fácil ou inevitável para os americanos, o que cria um conflito de interesses implícito que aumentará a tensão.

Até hoje os EUA têm liberdade considerável nos mares da região, mesmo perto da costa chinesa. A China está tentando estabelecer uma nova fronteira, não?
Sim, e aí entram as novas tecnologias. O poder naval americano é baseado em porta-aviões, e, se a China construir mísseis que tornem esses navios vulneráveis, a frota americana pode deixar de ter a mesma liberdade de deslocamento.
Para dar um exemplo concreto: em 1996, houve uma crise entre os dois países no estreito de Tawain. A China testou mísseis no estreito [para pressionar o governo da ilha], mas os EUA enviaram porta-aviões e a China recuou. O que a China pretende é que, se houver crise semelhante, os EUA hesitem em tomar a mesma atitude, porque o balanço de forças terá mudado.

O sr. parece endossar a tese de que a China é a principal manipuladora de moeda hoje, ao manter o yuan desvalorizado. Seu colega do "Financial Times", Martin Wolf, diz que os EUA, ao desvalorizarem sua moeda, tentam transferir o custo de sua recuperação para outros países. Como vê esta guerra cambial?
Martin trabalha na sala ao lado da minha. Ele é muito crítico da China e provavelmente mais crítico dos EUA. Não quero entrar no jogo de dizer quem é o maior culpado, exceto para dizer que a China está numa posição pouco usual.
É um país em desenvolvimento com renda per capita baixa, mas, por causa do seu tamanho, é também a segunda maior economia do mundo, caminhando para ser a primeira.
Então ela não pode reivindicar privilégios de países em desenvolvimento porque seu papel é muito crucial. É comum que países em desenvolvimento administrem sua moeda para promover exportações e evitar problemas de conta corrente.
Mas quando a China não permite que o valor de sua moeda seja determinado pelo mercado, isso é um fator de desestabilização.
O comportamento americano também teve um enorme efeito no mercado cambial. O Brasil e outros países são apanhados no meio [da disputa] entre China e EUA.

Havia a previsão de que o crescimento da classe média chinesa levaria à democratização do país, o que não aconteceu. O sr. vê alguma ameaça ao regime de partido único?
Não acho que a China será sempre governada pelo Partido Comunista. Mas acho que fomos ingênuos em imaginar que o país se tornaria democrático em pouco tempo. Havia essa expectativa nos anos 90, depois da queda dos regimes comunistas no Leste Europeu.
Imaginava-se que ou a China se fecharia para o mundo ou que, se ela mantivesse a abertura econômica, a democracia chegaria.
Acho que foi um choque descobrir que o PC foi capaz de manter o controle. Temos que nos acostumar com a ideia de que, em dez anos, a China ainda será um Estado de partido único e, ao mesmo tempo, a maior economia do mundo. Será a primeira vez em mais de cem anos que essa posição não será ocupada por uma democracia.
Quanto a como a democracia chegará à China, é uma questão difícil. Acho que a adoção do princípio de um homem, um voto será uma das últimas coisas a acontecer. Antes, haverá um expansão das liberdades civis, maior liberdade de imprensa, uma Justiça mais independente.

O fato de a maior economia não ser uma democracia influenciará, na sua opinião, a política interna de outros países em desenvolvimento?
Tivemos no mundo 30 anos de um processo de democratização, que atingiu seu pico por volta de 2003. A democracia não deixará de ser atraente, mas o sucesso relativo da China aumenta o prestígio do modelo chinês, de colocar a prosperidade econômica à frente das liberdades civis.
Isso, combinado ao momento de declínio do prestígio da democracia americana, certamente dará argumentos a governos autoritários que antes ficavam na defensiva.

Na sua opinião, o mundo hoje é mais perigoso do que a bipolaridade da Guerra Fria ou a unipolaridade pós-Guerra Fria?
Cada época teve os próprios riscos. Na Guerra Fria havia a tensão nuclear, as guerras por procuração na África, na América Central, na Ásia. Depois, viu-se que mesmo um país liberal e democrático como os EUA pode abusar do seu poder.
Essa nova era tem seus próprios riscos. O primeiro é a desintegração da governança global. O G20 está a caminho de se tornar um desapontamento. Os maiores problemas de hoje, como a mudança climática, dependem de um acordo global, e isso não é fácil num mundo multipolar.
Na Guerra Fria as fronteiras eram muito claras. Hoje a situação é mais fluida, sobretudo na Ásia. Onde ficam, por exemplo, países como Japão e Índia diante do equilíbrio de poder entre EUA e China?
Isso é que acho que pode levar a situações imprevisíveis, reações precipitadas e crises. Por isso é que, mesmo que EUA e China não pretendam ir à guerra ou mesmo ter uma relação de adversários, ambos estão cada vez mais desconfiados um do outro, em parte porque esse novo mundo é muito imprevisível.

 

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