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20/07/2011 - 17h52

A vida passa na Venezuela, e moradores têm tempo para contemplá-la

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SIMON ROMERO
DO "NEW YORK TIMES", EM CARACAS

Revoluções vêm e vão. Ciclos de construção frenética alteram o panorama da cidade, mas chegam as crises e elefantes brancos imobiliários restam como testamento. Os preços do petróleo sobem, caem e voltam a subir. Mas uma coisa ao menos perdura: as filas.

Diante de repartições do governo, bancos, pontos de ônibus, cinemas, hospitais, cabeleireiros e mercearias, lá estão: filas que se espalham de maneira tão prolífica pelas calçadas que
podem causar uma risadinha nostálgica em um burocrata europeu oriental de décadas passadas.

"Filas para nós são como uma pessoa com quem se é casado há tempo demais e não suportamos, mas sem a qual não conseguimos viver", disse Jorge Sayegh, colunista do jornal "El Universal", que este ano escreveu sobre a aceitação, e até o carinho, dos venezuelanos pelas suas filas. "As filas nos atraem como o mel atrai moscas; na verdade, nós as amamos".

Amor pelas filas? Não é certamente esse o caso, para muita gente com quem conversei aqui. Mas para alguns, que passaram a vida suportando fila após fila sem sucumbir ao desespero ou a uma raiva paralisante, algo que vai além da simples resignação, e que se aproxima de apreciação, acaba por fincar raízes.

"Por que se irritar com uma coisa dessas?", diz Thais Estrada, 62, aposentada que estava esperando em uma fila, numa manhã recente, para pagar sua conta de luz na estatal de energia. "Ficar na fila é uma oportunidade de fazer novos amigos", disse, enquanto conversava com a mulher ao lado.

"Depois de compartilhar dessa experiência, somos praticamente primas", disse Estrada, forçando um sorriso. "Há pessoas amarguradas por ficar na fila, mas esse é nosso sistema e nos adaptamos a ele".

Outros, claro, são menos positivos quanto às filas para isso e aquilo. Uma manhã passada no anárquico centro dessa cidade mostrava filas estendidas como os tentáculos de um polvo, em todas as direções, dos edifícios da previdência social, da corte suprema e do Ministério do Exterior.

Em um edifício, que abriga a assembleia nacional e diversos tribunais, havia 117 pessoas em uma fila que avançava lentamente à sombra de um mural de José Maria Vargas, um líder venezuelano do século 19, que ostentava uma citação: "O mundo pertence aos homens probos".

Alguns liam jornais. Outros digitavam mensagens em seus celulares. Alguns assobiavam distraídos, ou contemplavam o vazio. Soldados em uniformes camuflados perambulavam em torno da fila, fumando. O barulho de buzinas, de alarmes de carros de motocicletas acelerando os motores servia como ruído de fundo.

"Que ladilla", disse a irritada Paula Espinosa, 42, que estava na fila em busca de uma cópia de sua certidão de casamento. A expressão dela, usada na Venezuela para descrever uma situação ou pessoa irritante, pode ser traduzida informalmente como "que pentelhação".

Espinosa explicou que a fila em que estava do lado de fora era simplesmente para acesso ao único elevador que funciona no prédio. Outras filas, para outros propósitos, a aguardavam do lado de dentro.

Riscos que vão além do tédio esperam os venezuelanos em suas filas. As páginas criminais dos jornais, por exemplo, relatam assaltos contra pessoas em fila, especialmente nos bancos. Em um roubo a banco, dois ladrões simplesmente esperaram na fila como se fossem fazer um depósito, antes de concluir o crime.

Economistas e outros estudiosos enfrentam dificuldades para explicar por que a Venezuela desenvolveu uma cultura em que esperar na fila tem papel tão forte, mesmo em comparação com as ricas tradições burocráticas de outros países latino-americanos. Há quem atribua a culpa ao petróleo e à bizantina burocracia governamental que surgiu para gerir as receitas do produto.

Outros, como é comum em certos círculos por aqui, imputam a culpa ao presidente Hugo Chávez. O presidente, de acordo com esse argumento, reforçou os poderes da burocracia venezuelana ao nacionalizar dezenas de empresas privadas e aumentar o número de ministérios de 14 a 27, desde que assumiu, em 1999.

Ainda assim, a despeito de todas as novas oportunidades de fazer filas nas repartições do governo em Caracas, basta observar um pouco a história venezuelana para perceber que as filas intermináveis sobreviveram a todos os presidentes.

Erna Fergusson, uma escritora norte-americana que chegou ao país depois do final dos 27 anos de domínio do ditador Juan Vicente Gomez, descreveu a série de filas que teve de enfrentar apenas para embarcar no navio de Maracaibo para Curaçau. Seu livro, "Venezuela", saiu em 1939.

"Sair da Venezuela se provou tão difícil quanto entrar", escreveu Fergusson sobre seu périplo por cinco repartições diferentes, nas quais tinha de obter selos, carimbos e permissões, entre as quais uma petição do Legislativo municipal, para que sua partida fosse autorizada.

"Para mim", ela concluiu, "foi um período de delírio calorento".

O longo tempo que os venezuelanos passam em fila sob o forte sol do Caribe cria oportunidades para algumas pessoas empreendedoras.

Há, por exemplo, a profissão de "gestor", um despachante que enfrenta a carrancuda burocracia venezuelana (incluindo filas) em nome de um cliente, por preços salgados. Alguns gestores são tão competentes que atraem o respeito que seria dedicado a alguém que combine as competências de um advogado e um contador.

Há profissões menos elevadas nas filas venezuelanas. Algumas pessoas guardam lugar para outras nas filas, por um preço. Os gestores as chamam, desdenhosamente, de "vende-puestos". (Para quem conhece os costumes de Washington, são como os guarda-filas que garantem vagas para lobistas no acesso a audiências do Congresso.)

E há empresários como Lina Medina. Ela começa a trabalhar às quatro da manhã, diante da repartição que cuida de registro de estrangeiros, e aluga cadeiras plásticas por cerca de US$ 2 a pessoas que esperam na fila. Em lugar de esperarem em pé que o dia de trabalho começa, elas podem se sentar.

"Quanto mais longa a fila, mais dispostas a pagar pelas minhas cadeiras as pessoas ficam", disse Medina, 27, imigrante vinda da Colômbia.

Onde alguns veem oportunidade, outros percebem ineficiência.

Juan Nagel, economista e co-editor do Caracas Chronicles, um blog sobre política venezuelana, recentemente escreveu sobre sua tentativa, mal sucedida, de abrir uma conta bancária, depois de esperar duas horas e meia com uma senha na mão.

"Passa meia hora. Três pessoas são atendidas", escreveu Nagel, sobre os colegas de filas portando pastas repletas dos documentos necessários a adquirir divisas fortes. "Elas abordam os funcionários nos guichês como servos abordariam um lorde".

Nagel atribui as filas em parte a políticas como o controle de preços e em parte a regras trabalhistas que determinam quantos funcionários uma empresa pode ter. Essas medidas também inibem a competição, argumenta, tornando mais fácil para as empresas tratar mal seus clientes.

Ainda assim, alguns venezuelanos recebem com agrado regras que criam ainda mais filas. Yahaira Reyes, 42, designer gráfica, passou por quatro filas diferentes, certo dia, para comprar comida a preços subsidiados. Ela sorriu ao descrever as compras, que incluíam iogurte, bacon defumado e carne bovina brasileira.

Esperar para comprar comida nessas filas se tornou rotina desde que as autoridades impuseram controle estatal sobre o setor de distribuição de alimentos.

"As pessoas que se queixam das filas estão perdendo seu tempo", disse. "Quando vejo uma fila para comida boa a preço baixo, quero entrar nela".

TRADUÇÃO DE PAULO MIGLIACCI

 

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