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04/08/2011 - 17h45

Política secreta britânica sobre torturas é revelada

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IAN COBAIN
DO "GUARDIAN"

Um documento altamente sigiloso que revela de que maneiras agentes do MI5 e do MI6 foram autorizados a extrair informações de prisioneiros que sofriam tortura ilegal no exterior foi visto pelo "Guardian". As instruções quanto a interrogatórios, alguns de cujos detalhes são considerados delicados demais para que sejam revelados publicamente no inquérito do governo sobre o papel do Reino Unido na tortura e extradição ilegal de prisioneiros, instruía os líderes dos serviços de informações a comparar a importância da informação desejada ao nível de dor seria necessário infligir ao prisioneiro. Essa norma do governo britânico esteve em vigor por quase uma década.

Uma cópia das instruções sigilosas mostra que os líderes dos serviços de inteligência e ministros britânicos temiam que o público do país corresse maior risco de um ataque terrorista caso militantes islâmicos soubessem do teor das instruções. Uma seção declara que "se existe a possibilidade de que informação seja ou tenha sido obtida por meio de maus tratos a detentos, as consequências negativas, caso seja revelado publicamente o fato de que as agências buscaram ou aceitaram informações nessas circunstâncias, poderiam incluir efeitos potencialmente adversos para a segurança nacional".

"Por exemplo, é possível que em certas circunstâncias revelações como essas resultem em radicalização ainda mais intensa, gerando ameaça terrorista ainda mais séria", afirmavam as instruções, acrescentando que essa revelação "pode resultar em danos à reputação das agências", e que isso poderia solapar sua efetividade.

O fato de que as instruções quanto à política de interrogatórios e outros documentos semelhantes podem não ser divulgados publicamente durante o inquérito sobre a cumplicidade britânica em casos de tortura e extradição ilegal fez com que ativistas dos direitos humanos e advogados se recusassem a oferecer provas ou realizar reuniões com a equipe de investigação, por lhe faltar "credibilidade e transparência".

A decisão, tomada por 10 grupos que incluem a Anistia Internacional, Liberty e Reprieve, se segue à publicação dos protocolos que serão seguidos na investigação, segundo os quais a decisão final sobre a divulgação do material obtido durante o inquérito, presidido por sir Peter Gibson, caberá a um dos secretários integrantes do gabinete britânico.

O inquérito será iniciado depois da conclusão de uma investigação policial sobre alegações de tortura. Houve quem criticasse a indicação de Gibson, um juiz aposentado, para presidir ao inquérito, porque no passado ele serviu como comissário dos serviços de inteligência, fiscalizando o uso, pelos ministros do governo, de um controvertido poder de "suspender a aplicação" de leis civis e criminais britânicas a fim de oferecer certo grau de proteção a agentes de inteligência britânicos que cometam crimes no exterior. O governo nega que exista um conflito de interesses.

Os protocolos também dispõem que antigos prisioneiros e seus advogados não terão o direito de interrogar agentes de inteligência e que todas as provas apresentadas por atuais e antigos membros dos serviços de inteligência, abaixo do escalão de comando, serão arguidas em sessões fechadas.

O documento visto pelo "Guardian" mostra que as instruções secretas para interrogatórios estiveram em vigor até que fossem alteradas por ordem do governo de coalizão, em julho do ano passado. O documento também:

  • Reconhece que agentes do MI5 e MI6 podem ter violando leis britânicas e internacionais ao tentar obter informações junto a pessoas mantidas como prisioneiras por organizações estrangeiras que sabidamente utilizam tortura
  • Explica a necessidade de obter cobertura política para quaisquer ações potencialmente criminosas, por meio de consultas prévias aos ministros envolvidos.

As instruções secretas quanto a interrogatórios foram divulgadas inicialmente para os agentes do MI5 e MI6 no Afeganistão em janeiro de 2002, para permitir que continuassem a interrogar prisioneiros que sabiam estar sofrendo maus tratos de integrantes das forças armadas norte-americanas. Sofreram pequenas alterações e foram expandidas em 2004, depois que se tornou evidente que número significativo de muçulmanos britânicos, radicalizados pela invasão do Iraque, estavam planejando ataques contra o Reino Unido.

As instruções foram alteradas de novo em julho de 2006, durante a investigação de um suposto complô para a derrubada de aviões em voo sobre o Atlântico. Intitulado "política para contatos de agências com serviços de segurança e inteligência estrangeiros quanto a prisioneiros que podem estar sendo submetidos a maus tratos", o documento que continha as instruções foi encaminhado a agentes de inteligência que estavam encarregados de decidir que perguntas fazer aos prisioneiros.

Outras instruções foram promulgadas em separado quanto a assuntos correlatos, entre os quais a conduta direta de interrogatórios por agentes de inteligência. O documento descreve os termos das leis nacionais e internacionais sobre tortura, e explica que o MI5 e o MI6 "não participam de, encorajam ou acatam" tortura ou tratamento desumano e degradante. Os agentes de inteligência foram instruídos a não realizar quaisquer ações que "sabidamente" resultassem em tortura. No entanto, estavam autorizados a agir quando viam "clara possibilidade de que suas ações resultassem em maus tratos para um prisioneiro" desde que primeiro obtivessem garantias da agência estrangeira com a qual estivessem colaborando.

Mesmo nos casos em que essas garantias viessem a ser consideradas como pouco confiáveis, os agentes podiam receber permissão para levar adiante o processo, a despeito da possibilidade real de que estivessem cometendo um crime e de que um prisioneiro ou prisioneiros viessem a ser torturados. "Quando, não obstante as exceções e garantias prévias obtidas, for considerado que existe possibilidade real de maus tratos, e portanto o risco de que as ações da agência possam ser consideradas ilegais, essas ações não poderão ser realizadas sem autorização dos escalões superiores. Em certos casos, isso pode envolver consulta a ministros", afirma o documento.

Ao decidir se as ações devem ser autorizadas, os agentes em posições de comando no MI5 e MI6 "compararão o risco de maus tratos e de que as ações do agente possam ser consideradas ilegais à necessidade da ação proposta". Em momentos como esses, "o imperativo operacional da ação proposta, por exemplo transmitir ou obter informações que possam salvar vidas", deve ser comparado "ao nível previsto de maus tratos e à probabilidade de que essas consequências adversas se concretizem".

Os ministros seriam consultados em "casos especialmente difíceis", e o processo de consultas deveria ser "formulado de forma a garantir que haja a visibilidade e a consideração de risco requeridas quanto a possíveis ações ilegais". E todas essas operações deveriam ser mantidas em segredo, para não colocar interesses e vidas britânicos em risco.

A revelação do conteúdo do documento parece ajudar a explicar o forte incômodo exibido por ministros e ex-ministros britânicos quando o "Guardian" descobriu a existência das instruções, dois anos atrás. O ex-primeiro ministro Tony Blair respondeu de forma evasiva a diversas perguntas sobre o papel desempenhado por ele na autorização de mudanças nas instruções, em 2004, e David Blunkett, antigo secretário do Interior, alegou que simplesmente perguntar sobre o assunto era potencialmente difamatório.

Quando era secretário do Exterior, David Milliband declarou a parlamentares que as instruções secretas jamais seriam divulgadas, porque "nada que publicamos deve favorecer o inimigo". Blair, Blunkett e o ex-secretário do Exterior Jack Straw também se recusaram a dizer se estavam ou não informados de que as instruções levaram algumas pessoas a sofrer torturas. O diretor do MI5, Jonathan Evans, afirmou que no mundo pós-11 de setembro, seus agentes estariam fracassando em suas funções caso não trabalhassem com agências de inteligência em países cujo histórico quanto aos direitos humanos é negativo, enquanto seu colega no MI6, sir John Sawers, falou dos "dilemas constantes e reais" que esses relacionamentos envolvem.

Outros, porém, vêm questionando se, nas palavras do ex-promotor público Ken Macdonald, "o governo Tony Blair não é culpado por ter adotado uma política quase criminosa".

O Comitê de Inteligência e Segurança, parlamentares indicados pelo primeiro-ministro para auxiliar na fiscalização das agências de inteligência britânica, ao que se sabe examinou o documento em sessão secreta, mas não está claro se apresentou sugestões ou queixas. Paul Murphy, o parlamentar trabalhista e antigo ministro que presidia o comitê em 2006, se recusou a responder sobre o assunto.

Alguns homens, a maioria dos quais muçulmanos britânicos, se queixaram de que foram questionados por agentes do MI5 e MI6 depois de sofrerem torturas por agentes de inteligência estrangeiros no Paquistão, Bangladesh, Afeganistão e baía de Guantánamo. Sabe-se que alguns deles foram detidos por sugestão de agentes de inteligência britânicos. Outros alegam que foram torturados em países como o Egito, Dubai, Marrocos e Síria, e que sofreram interrogatórios cuja base eram informações que só poderiam ter sido fornecidas pelo Reino Unido.

Alguns deles terminaram condenados por delitos graves relacionados a terrorismo ou ficaram sujeitos a liberdade vigiada. Outros retornaram ao Reino Unido e retomaram suas vidas, depois de curados. Um deles é empresário em Yorkshire, outro um projetista de software que vive em Berkshire e um terceiro um médico que trabalha na costa sul da Inglaterra. Algumas das vítimas abriram processos civis contra o governo britânico, e em certos casos receberam indenizações em acordos extrajudiciais, mas outros continuam temerosos demais para recorrer à Justiça.

A Scotland Yard examinou a possibilidade de que um agente do MI5 e um agente do MI6 tenham cometido crimes ao extrair informações de prisioneiros no exterior, e detetives agora estão conduzindo "uma investigação mais ampla quanto a outros possíveis crimes", de acordo com uma descrição do trabalho.

Novas instruções quanto a interrogatórios foram distribuídas no ano passado depois da vitória eleitoral da oposição, por ordem do novo primeiro-ministro David Cameron, que alegou que a coalizão estava "determinada a resolver os problemas do passado" e desejava "esclarecer o que será e não será aceitável no futuro".

Grupos de direitos humanos apontaram para o que entendem como sérias lacunas que poderiam permitir que agentes do MI5 e MI6 continuem envolvidos na tortura de prisioneiros fora do Reino Unido. Na semana passada, a alta corte britânica realizou sua primeira audiência sobre um processo que contesta a legalidade das novas instruções, apresentado pela Comissão de Igualdade e Direitos Humanos. O veredicto deve surgir antes do final do ano.

Tradução de Paulo Migliacci

 

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