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26/08/2011 - 19h30

O passado da Rússia não é indicativo do futuro do país

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JOHN THORNHILL *
DO "FINANCIAL TIMES"

Os russos às vezes dizem que é impossível prever qualquer coisa em seu país --até mesmo o passado. Os heróis de uma era são magicamente apagados da era seguinte. Os avanços ousados de um líder são tachados de esquemas insensatos pelos líderes seguintes. Como escreveu Boris Pasternak certa vez, muitas vezes é difícil distinguir vitórias de derrotas.

Esse caleidoscópio histórico em constante mutação é válido para o putsch fracassado do Partido Comunista de linha dura, em agosto de 1991, que levou rapidamente ao desmoronamento da União Soviética, alguns meses mais tarde. Nos últimos 20 anos, aqueles acontecimentos devastadores --que levaram à desintegração de um império, uma economia, uma ideologia e um regime político-- vêm suscitando controvérsia incessante. Vêm sendo interpretados e reinterpretados interminavelmente na Rússia, sendo vistos como motivo de comemoração, desespero, revolta, desilusão ou vergonha.

Para alguns russos, mais notadamente para Boris Ieltsin, o primeiro líder russo pós-comunista, a implosão da União Soviética foi uma libertação, tanto para os povos da Rússia quanto para os outros 14 países que emergiriam dos escombros do império soviético. O colapso de 74 anos de governo do Partido Comunista abriu o caminho para a emergência de uma sociedade, uma economia e um sistema político mais livres --e também ajudou a entrincheirar Ieltsin no poder.

Mas o sucessor deste, Vladimir Putin, mais moldado por uma visão de mundo típica da KGB, chegou a uma conclusão diferente depois de analisar aqueles acontecimentos e o caos que se seguiu a eles. Para Putin, a implosão do poder soviético foi "a maior catástrofe geoestratégica do século 20", deixando a Rússia como a humilhada e empobrecida parte restante de uma superpotência que, no passado, rivalizara com os Estados Unidos. Não surpreende que sua Presidência tenha sido tão marcada pela preocupação de restabelecer o poder do Kremlin e reafirmar a esfera de influência da Rússia no exterior.

O presidente atual da Rússia, Dmitri Medvedev, 45 anos, parece fazer uma avaliação mais nuançada de 1991. Em entrevista que concedeu ao "Financial Times" em junho, ele rejeitou o parecer de Putin, dizendo que a guerra civil pós-revolucionária de 1917-23 e a Segunda Guerra Mundial, que, juntas, mataram dezenas de milhões de pessoas, foram desastres muito piores para a Rússia.

Medvedev descreveu sua geração como sendo "a mais feliz" da nação, porque conheceu na pele as carências de bens dos tempos soviéticos, mas é suficientemente jovem para ter podido beneficiar-se das oportunidades da era pós-comunista. "Ficou muito feliz por ter vivido nessas duas épocas", disse ele. "Acredito que tudo o que aconteceu representa progresso indiscutível para o país e o povo."

No Ocidente desenvolveu-se uma narrativa muito mais simples sobre o colapso soviético. Para a maioria das pessoas, o desaparecimento do "império do mal" foi visto como uma bênção incondicional, reduzindo o perigo de o mundo acabar em uma conflagração nuclear e oferecendo a atração de um dividendo da paz.

No entanto, a queda do principal rival ideológico dos Estados Unidos provocou abalos posteriores. Incentivou o triunfalismo do tipo "fim da história", segundo o qual os mercados livres e a democracia liberal eram os pontos culminantes da evolução política e econômica do homem. Esse húbris ideológico contribuiu para o fundamentalismo de mercado que levou à derrocada financeira de 2008.

Os historiadores ocidentais também começaram a reinterpretar 1991. Uma das análises mais interessantes vem sendo a de Stephen Kotkin, que, em "Armageddon Averted" (Armageddon evitado), argumentou que o colapso soviético não terminou em 1991, mas prosseguiu ao longo da década, atrapalhando e desacreditando as reformas.

Algumas das instituições do Estado soviético morto continuaram a dar sinais de vida durante anos, frustrando as tentativas ocasionais de Ieltsin de criar algo que se assemelhasse a uma economia de livre mercado ou uma democracia. O imenso complexo industrial militar soviético, construído com indiferença perversa a qualquer espécie de lógica industrial, também revelou-se um ônus enorme à economia.

Kotkin argumenta que, em vista desta escala de desorganização política, econômica e social, é altamente espantoso que o caos da Rússia nos anos 1990 --por mais que o país tenha parecido tumultuado na época-- não tenha sido infinitamente pior. O Armageddon foi evitado de fato. Mas não são apenas as consequências de 1991 que vêm suscitando controvérsia; suas causas também continuam a ser largamente discutidas. Um aspecto do colapso soviético que provoca perplexidade é por que ele não foi mais amplamente previsto de antemão, dado que, visto em retrospectiva, ele parecia tão inevitável.

Como estudante de pós-graduação em política soviética, me recordo de ter assistido a uma conferência em Londres, em 1986, que teve a presença de muitos kremlinólogos destacados. Um participante perguntou se a União Soviética cairia ainda durante nossas vidas. Ainda me recordo das gargalhadas incrédulas: o Partido Comunista era coeso demais, o domínio da KGB era forte demais, os povos soviéticos eram demasiado passivos. Como escreveu em 1995 o veterano diplomata americano George Kennan: "Acho difícil pensar em qualquer acontecimento mais estranho, espantoso e, à primeira vista, mais inexplicável, que a repentina e total desintegração e o desaparecimento do cenário internacional ... da grande potência conhecida sucessivamente como o Império Russo e depois como a União Soviética."

Nosso fracasso constante em prever os fatos na Rússia deveria nos ensinar mais humildade quando se trata de imaginar o futuro do país. É perigosíssimo supor que o futuro da Rússia será meramente uma extrapolação de seu presente.

No início dos anos 1990 era comum ouvir russos lamentarem que seu país precisaria de 40 anos no deserto para conseguir despir-se de sua mentalidade de escravo soviético. Estamos apenas na metade desse caminho. Quem sabe como o país vai evoluir?

Não é apenas o passado que é imprevisível.

*John Thornhill é ex-diretor da sucursal do "Financial Times" em Moscou.

Tradução de Clara Allain

 

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