Olímpio Barbosa de Moraes Filho: A saúde pública espera por mudança
Poucos se dão conta de que uma tragédia assola o país, sem alardes no noticiário. No Brasil, por ano, de 250 a 300 mulheres morrem em decorrência de abortos clandestinos.
A maioria delas é jovem, negra, analfabeta, tem baixa escolaridade e nível socioeconômico. Por ser crime, a conta é incerta, mas o impacto da perda dessas vidas desestrutura famílias e enterra sonhos.
As estimativas falam em cerca de 1 milhão de abortos realizados na ilegalidade anualmente no país. Desse total, ao menos um quarto gera complicações que levam a internações para curetagens pós-abortamentos na rede pública. Muitas mulheres ficarão estéreis ou terão a saúde comprometida por toda a vida.
Isso ocorre à sombra do nosso anacrônico Código Penal (de 1940), cujos estreitos limites excludentes de ilicitude do aborto não dialogam com os compromissos humanísticos inerentes à responsabilidade social e aos tratados internacionais subscritos pelo governo brasileiro.
Há pouco, o Conselho Federal de Medicina --em resposta a solicitação da comissão especial do Senado criada para cuidar da reforma desse código-- decidiu expressar ser favorável à ampliação do leque de situações em que há exclusão de ilicitude.
Ora, essa decisão não transforma a entidade em defensora do aborto ou de sua descriminalização. O que está em discussão é o aumento do número de "causas excludentes de ilicitude". Ou seja, em determinadas situações previstas em lei, a interrupção da gestação não configurará crime. Atos praticados fora desses parâmetros serão punidos.
A análise de tema tão complexo não pode ser tratada de forma maniqueísta, de reserva teológica ou de fé dogmática. Espera-se o equilíbrio e a isenção que permitam enxergar no aborto a relevância de um grave quadro de saúde pública.
Nesse debate, o tema do aborto deve ser analisado sob o prisma da autonomia individual e da realidade trágica que leva mulheres a arriscarem a vida. Por medo de serem punidas pela Justiça, realizam procedimentos sem segurança.
A prática do aborto clandestino prevalece em países onde as leis sobre o tema são mais restritivas.
Em 97 países, que concentram cerca de 70% da população mundial, há regras que permitem a interrupção da gestação. Em outros 93, a prática é proibida ou só é permitida em situações especiais, como deformações do feto, violações ou risco de vida para a mãe. A Organização Mundial da Saúde calcula a realização de 46 a 55 milhões de procedimentos anuais em todo o mundo. Cerca de 80% deles em países em desenvolvimento.
Alarcão | ||
Estudos indicam que, em países onde houve reformas legais com ampliação do número de situações de excludência de ilicitude, caiu de forma significativa a morbimortalidade materna. Nesses locais, com o aumento da procura das mulheres por informação em saúde sexual e reprodutiva e por métodos contraceptivos, reduziram-se as situações de gestação indesejada e, consequentemente, de abortos.
Não podemos prever de forma cartesiana que isso se reproduzirá no Brasil, apesar dos indícios científicos dessa possibilidade.
O que nos parece relevante é discutir o tema com todos os setores da sociedade, para tratá-lo sem subterfúgios. É preciso encontrar o melhor caminho para impedir que a transformação do direito à vida assuma o caráter de dever de sofrimento para milhares de mulheres.
Num país marcado pela desigualdade, apenas o exercício da razão, da compaixão e da solidariedade poderá evitar novas tragédias ou a manutenção dos dramas silenciosos.
OLÍMPIO BARBOSA DE MORAES FILHO é professor da Universidade de Pernambuco e vice-presidente da Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia no NE
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