Lei Rouanet deve financiar gastronomia? Sim
ROBERTO SMERALDI: GASTRONOMIA É CULTURA
A gastronomia não está de forma alguma excluída da Lei Rouanet, cujo objetivo é a "sobrevivência e o florescimento dos modos de criar, fazer e viver da sociedade brasileira". Apenas houve omissão por parte de gestores públicos que implementaram a lei de forma restritiva e em conflito com seus princípios.
Diante disso, hoje o legislador precisa explicitar a obrigação de contemplar internamente aquilo que o Brasil já ratifica quando acontece fora de suas fronteiras.
Por exemplo, reconhecemos na Unesco a gastronomia mexicana ou francesa como patrimônio cultural mundial: patrimônios nossos também, portanto. Assim, tortilla e crêpe até nos pertencem. A tapioca, jamais. Vai lá entender. Por isso é preciso mudar a lei. Mas discutir algo tão óbvio desvia a atenção do que precisa ser pautado de forma profunda na sociedade brasileira.
Ao se focar insensatas prioridades para a distribuição de uns trocados de renúncia fiscal –será que nossa cultura se reflete mais na gastronomia ou na língua, na moda ou na música?– se deixa de discutir o que interessa, como os orçamentos do BNDES, do CNPq ou do Ministério do Desenvolvimento para investir na identidade dos territórios, onde a relação entre homem e alimento é atributo decisivo de sua formação.
A campanha Gastronomia é Cultura foi lançada para fazer com que as políticas públicas reconheçam o que a Europa tornou prioridade em seus Estados membros, ou que países tão diferentes quanto Coreia do Sul e Peru incorporaram em suas diretrizes de governo.
A gastronomia como cultura é essencial para medidas de saúde pública, para fins educacionais e para gerar desenvolvimento. Além de contribuir para afirmar a identidade de povos e territórios, o que é precondição do desenvolvimento.
O reconhecimento da gastronomia como cultura é uma tardia e urgente tarefa nacional: afeta o currículo escolar, os investimentos no turismo, a viabilidade de unidades de conservação e terras indígenas, a promoção de emprego e formação profissional nas cidades assim como de arranjos produtivos locais no meio rural.
É também dar acessos àquelas poucas centenas de milhões de reais em renúncia fiscal para produzir audiovisuais ou livros com a Lei Rouanet. Também deve afetar a maneira em que você organiza sua próxima refeição.
A cultura gastronômica não é colecionar livros. É a relação de confiança que você constrói com seu feirante, é o conhecimento que seus filhos têm da origem do que chega à mesa, aliás é o próprio fato deles sentarem à mesa.
Se isso já é difícil com os atuais padrões de consumo, paradoxal é ter de trabalhar na contramão das políticas públicas.
Se hoje gastronomia é a principal receita turística de muitos países, se hoje o Brasil é alvo de potencial extrativismo de ingredientes sem benefício local ou até sem consciência de que isso acontece, se paradoxalmente o país discrimina ou proíbe alguns de seus produtos melhores, é porque alguns conceitos-chave não estão no livro da escola.
Quando, por exemplo, nós do Instituto Atá aceitamos a proposta da Prefeitura de São Paulo para administrar cinco boxes e ajudar a incubar um entreposto dos biomas do Brasil como forma de revitalizar o Mercado de Pinheiros, resolvemos enfrentar um desafio cultural, muito antes do que logístico ou mercadológico.
O povo que não reconhecer traços primordiais de sua identidade, tais como seus próprios saberes populares, está fadado a se perder: por isso, #eucomocultura.
ROBERTO SMERALDI, 54, jornalista, é vice-presidente do Instituto Atá, diretor da OSCIP Amigos da Terra - Amazônia Brasileira e autor do "Novo Manual de Negócios Sustentáveis" (Publifolha)
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