Marcos Alberto Rocha Gonçalves
Conceito de família deve abranger todas as formas de relacionamento? Sim
A LIBERDADE DO AFETO
Desafiando os líricos lírios de Drummond, a inventividade legislativa brasileira, de obtusa prodigalidade nesse esquisitíssimo quadrante da nossa história, se fez novamente histriônica, desta vez na forma do projeto de lei 6.583/2013.
Ele dispõe sobre o Estatuto da Família, aprovado em caráter conclusivo pela Comissão Especial da Câmara dos Deputados.
O conteúdo que compõe o projeto de lei fundamenta-se de forma central, segundo sua justificativa, na desconstrução do conceito de família, propugnando o fortalecimento dos laços formados pela união conjugal firmada entre o homem e a mulher a partir de uma série de enunciação de direitos.
Assim, a regra proposta nada mais faz do que um arrombar de portas já abertas a um modelo muito bem delineado de enlace (muitas vezes nem tão) afetivo, garantindo a quem nele se enquadrar o desfrute da efetivação de amplo conjunto de direitos.
O que há de novo no projeto é, paradoxalmente, sua marca mais conservadora, revelada pelo desnudamento de uma legislatura escancaradamente excludente.
Trata-se, aliás, de movimento assustadoramente comum nos dias de hoje, como são exemplos o projeto de lei que pretende estabelecer o Dia do Orgulho Heterossexual e a proposta de emenda à Constituição, votada e aprovada na Câmara dos Deputados, que visa diminuir a maioridade penal de 18 para 16 anos em crimes graves.
Nos limites da proposta do estatuto, como se fosse o arremate de um típico roteiro do teatro do absurdo, família passaria a ser somente a união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável, ou ainda a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, excluindo-se, pela lei, tudo aquilo que não cabe no esquadro do projeto.
Ao deixar de apresentar avanços teóricos e práticos em relação à efetivação de direitos daqueles que de fato encontram-se vulneráveis, o projeto apresenta em seu núcleo o intento último da exclusão, tentando domesticar as relações humanas a partir do afastamento de direitos.
Ao trancafiar de volta no armário a liberdade de todos serem sujeitos de suas próprias histórias, o legislador brasileiro faz pouco caso do sentido próprio do ordenamento jurídico constitucional estabelecido em ambiente democrático.
Os sentimentos e laços afetivos que formam os sujeitos não cabem em uma lei. Lembrando um famoso poema de Drummond, "Quadrilha", não há como determinar que Lili, por ter-se casado com J. Pinto Fernandes, tenha, no âmbito familiar, direitos distintos a Maria, que ficou para tia.
Ao eventualmente se constituir o Estatuto da Família em lei, vivenciaremos uma vez mais o confronto entre a materialidade social e um discurso hegemônico totalitário, porque redutor de complexidades.
Esperamos que a tentativa do legislador de segregar direitos se transforme na reafirmação do acolhimento constitucional de todas as formas de afeto.
MARCOS ALBERTO ROCHA GONÇALVES, 32, é professor de direito civil da Pontifícia Universidade Católica - PUC-PR e sócio da Fachin Advogados Associados
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