PAULO SÉRGIO PINHEIRO
Carandiru, sonho autoritário
Não fui o primeiro a entrar no pavilhão 9 do Carandiru, onde 111 presos desarmados foram mortos por PMs em 2 de outubro de 1992. Visitei a antiga Casa de Detenção de São Paulo no dia seguinte ao massacre, quando todos os corpos já haviam sido retirados.
O chão dos corredores e das celas fora lavado, mas sangue ainda escorria nas paredes. Um cheiro atroz de desinfetante indicava a tentativa de apagar os vestígios da barbárie. Necropsias demonstraram que 90% dos detentos foram alvejados na cabeça.
Comuniquei-me à época com o governador Luiz Antônio Fleury Filho, na esperança de que fosse se contrapor à violência ilegal da PM. O governo, no entanto, alegou que se tratava de um conflito armado -tese bastante implausível, já que nenhum PM foi baleado nem ferido por arma de fogo. A cada novo detalhe revelado, essa interpretação fajuta foi-se esboroando.
E, afinal, quem dera a ordem de invasão? A questão nunca foi esclarecida, mas uma ordem houvera, pois a PM não se meteria numa operação dessa envergadura sem o consentimento das instâncias superiores. Os altos escalões do governo e da corporação militar jamais foram punidos.
O país reviveu os horrores do massacre 24 anos depois, em audiência na 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo no dia 27 de setembro. Na ocasião, o desembargador Ivan Sartori votou pela anulação do julgamento e pela absolvição de 74 policiais envolvidos no crime, alegando que não houve massacre no Carandiru, mas sim uma ação em legítima defesa.
Em resposta a esse voto delirante, que tenta consagrar a impunidade aos 74 PMs já condenados, mais de cem personalidades e entidades que atuam no âmbito dos direitos humanos ingressaram na terça (18) com uma reclamação disciplinar contra o desembargador Sartori no Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
O surpreendente argumento de legítima defesa, tentativa de anular o veredicto do júri popular de cinco julgamentos, ignora as provas nos autos que mostraram cabalmente que os policiais militares excederam seu poder, executando presos que não apresentaram resistência.
O mesmo desembargador demonstrou supremo desprezo pelas exigências de impessoalidade do magistrado ao se manifestar em uma rede social em 4 de outubro.
"Diante da cobertura tendenciosa da imprensa sobre o caso Carandiru, fico me perguntando se não há dinheiro do crime organizado financiando parte dela, assim como boa parte das autodenominadas organizações de direitos humanos", escreveu.
O caso Carandiru concentra em si o profundo descaso com que as autoridades tratam a violência arbitrária do Estado contra negros, pobres e segregados. É um exemplo da continuidade autoritária sob a democracia, na qual a sanha punitiva segue minuciosamente seletiva.
O ideal para o autoritarismo brasileiro é que criminosos e condenados desapareçam, exterminados se possível. O massacre do Carandiru, consagrada a impunidade, ficará para sempre como a realização desse sonho macabro.
PAULO SÉRGIO PINHEIRO foi secretário de Estado de Direitos Humanos (governo FHC). Preside a Comissão da ONU de investigação sobre a Síria
PARTICIPAÇÃO
Para colaborar, basta enviar e-mail para debates@grupofolha.com.br
Livraria da Folha
- Box de DVD reúne dupla de clássicos de Andrei Tarkóvski
- Como atingir alta performance por meio da autorresponsabilidade
- 'Fluxos em Cadeia' analisa funcionamento e cotidiano do sistema penitenciário
- Livro analisa comunicações políticas entre Portugal, Brasil e Angola
- Livro traz mais de cem receitas de saladas que promovem saciedade