ELEONORA DE LUCENA
Bomba de nêutrons
A bomba de nêutrons mata seres vivos e poupa prédios. Não parece ser outro o objetivo do governo, que, sem qualquer pudor, segue implacável com sua sanha destrutiva. Sem o aval das urnas, faz corte de gastos, derrubada de direitos, repressão a protestos.
Atônita, a população mal consegue acompanhar a avalanche regressiva. Todo o dia sai uma medida contra a sociedade. A Petrobras vai sendo dilapidada; o ensino, enxovalhado; a saúde, depauperada; a Previdência, privatizada. Desemprego e desesperança vicejam.
No Planalto, outra avalanche: a de denúncias de corrupção. Num clima de salve-se quem puder, inépcia e hipocrisia dançam uma ópera bufa cruel. Bezerra da Silva tinha razão ao cantar o refrão de "Reunião de Bacana".
Sem rumo e com instituições em farrapos, o país mergulha na maior recessão da sua história. Ao contrário da propaganda oficial, não há perspectiva de melhora. Em liquidação, ativos públicos e privados vão sendo esfacelados. Negócios esdrúxulos atacam interesses nacionais. Empresas encolhem ou fecham. Alguns preveem convulsão social.
Parques públicos, reservas indígenas, controle ambiental: de roldão proliferam ameaças contra conquistas de décadas. Por todo o lado, o grupo que se assenhorou de Brasília tem avidez e pressa. Sabe que pode ficar por pouco tempo na capital e trata de abocanhar o que pode em benefício próprio.
O Brasil é maior que essa gente.
Começam a sair da penumbra os interesses externos no terremoto institucional brasileiro. A aliança do país nos Brics não agrada aos EUA, que não querem dar espaço a desafios à sua hegemonia.
Donald Trump embaralha o cenário. Cercado de empresários, ele conseguirá mexer na estrutura produtiva mundial, contrariando interesses de corporações? Qual o impacto disso no Brasil? As próximas eleições na Alemanha e na França vão reforçar a desglobalização?
As mudanças convulsivas nas entranhas do capitalismo financeiro (em crise há quase dez anos) atormentam as elites globais e desnorteiam seus aliados na periferia.
Aqui, as arestas dentro do poder ficam mais agudas. A disputa pela privatização do bolo estatal é aberta, gera instabilidade e estraçalha a democracia e o Estado de Direito.
Há 50 anos, Jango, JK e Lacerda, com ideias tão diferentes, tentaram erguer a frente ampla contra a ditadura militar. A repressão podou a iniciativa. Mas o mesmo espírito voltou com força, anos depois, no movimento pela anistia, no apoio a greves, na luta pelas Diretas-Já.
Na história brasileira, muitos outros momentos demonstraram a possibilidade de luta conjunta. No século 19, o primeiro movimento social do país surgiu com a campanha pela abolição da escravidão. Para além dos combates nos quilombos, advogados, artistas, poetas se uniram contra o brutal modelo. O nascente Exército se negou a exercer o papel de capitão do mato para caçar escravos rebelados.
No século 20, a luta pelo monopólio do Estado na exploração do petróleo resultou na convergência entre Forças Armadas, empresários e setores populares com o governo nacionalista de Getúlio Vargas. Contrariando pressões externas, o país criou a gigante Petrobras.
Em todos esses momentos, o pano de fundo foi a ideia de projeto de nação. Hoje, o neoliberalismo empurra para a fragmentação e divisão. Há grupos de todo o tipo e isso enriquece a democracia. Mas o momento dramático do país exige mais.
O derretimento do país deve ser enfrentado por frente mais ampla, para além da esquerda. O que é preciso reunificar é a própria nação. E desativar a bomba de nêutrons, dando fim à "reunião de bacana".
ELEONORA DE LUCENA, jornalista, foi editora-executiva da Folha de 2000 a 2010. Escreve livro sobre Carlos Lamarca
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