O respeito aos direitos humanos deve ser critério para avaliar a redação do Enem? SIM
Lucas Pontes/UOL | ||
Alunos durante a prova do Enem, em Curitiba |
DEFENDER OS CRITÉRIOS DO ENEM É PROTEGER A RACIONALIDADE
Tudo começou com Simone de Beauvoir (1908-1986).
Em 2015, o Enem sofreu a primeira investida dos movimentos conservadores. Um dos trechos mais célebres de "O segundo sexo"–não se nasce mulher, torna-se mulher– fundamentou uma das questões da prova de Humanas e suscitou reações apaixonadas.
A sentença afirma a concepção de identidade sexual fundamentada na cultura, e não na natureza, o que é amplamente legitimado pela observação da realidade e pela investigação sociológica.
Houve, no entanto, aqueles que, ecoando princípios religiosos, viram no texto um ataque a pretensas "leis da natureza", um ensaio de doutrinação ideológica e perversão moral. Agora, são os critérios de correção da redação que estão em xeque, contestados na Justiça pelo movimento Escola Sem Partido.
O alvo do momento é a chamada competência V: "Elaborar proposta de solução para o problema abordado, mostrando respeito aos valores humanos e considerando a diversidade sociocultural."
Qual o sentido e a abrangência do respeito aos valores humanos referido pela competência?
Em primeiro lugar, é preciso lembrar que o Enem é uma avaliação pública, realizada pelo governo federal, cujos atos obedecem à Constituição Federal e à lei ordinária.
Será possível admitir, num exame público, financiado com o dinheiro do contribuinte, o desrespeito à lei e à Constituição? Poderia ser considerada uma redação que defendesse, por exemplo, o genocídio como forma de resolver os problemas sociais brasileiros?
Da mesma forma, a pretensa defesa da liberdade de expressão permitiria a tolerância a discursos abertamente racistas no texto de um candidato à universidade pública?
Para além das considerações legais, espera-se que um aluno do ensino médio bem formado não adote atitudes ofensivas aos direitos humanos e ao Estado de Direito ao escrever sua redação.
Não se concebe, ao abordar um tema como violência e criminalidade (já cobrado em edição anterior do exame), que o estudante assuma a defesa da lei de talião (olho por olho, dente por dente) ou propague uma defesa intransigente do abuso de autoridade por parte dos agentes policiais.
Da mesma forma, é inimaginável a menção a ideias preconceituosas e explicitamente xenofóbicas quando se discute a questão da imigração recente para o Brasil, tema já cobrado na avaliação de redação.
No atual contexto, é preciso distinguir o posicionamento perante um tema, imprescindível ao texto argumentativo, do sectarismo ideológico que vem predominando no exasperado debate político brasileiro.
Abordar um determinado assunto de forma assertiva e clara não deve se confundir com a adoção de posição intransigente, estreita, intolerante. Estas desconhecem ou desqualificam argumentos contrários a determinado ponto de vista.
É pela análise racional que conseguimos atingir um patamar de compreensão razoável do mundo (nunca sua revelação completa e absoluta, diga-se).
Se tal tipo de entendimento é adotado, não há como fugir de uma posição tolerante e inclusiva. Afinal, é impossível defender o nazismo pela argumentação racional —e este é o fundamento das dissertações.
JOSÉ RUY LOZANO é sociólogo, autor de livros didáticos, conselheiro do Cipi (Conselho Independente de Proteção à Infância) e coordenador pedagógico geral do Colégio Nossa Senhora do Morumbi "" Rede Alix
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