Reflexões sobre a intolerância
Andre Borges/Folhapress | ||
Protesto em frente ao Congresso Nacional, em 2013, com os dizeres "Intolerância Não" |
Vivemos hoje em um mundo que nos causa profunda perplexidade em face da crescente perda de princípios e parâmetros em todos os planos da vida. Alguns atribuem esse assombro à chamada "pós-modernidade", expressão que ainda aguarda uma melhor definição por parte dos estudiosos.
Não obstante, ela identifica um novo modo de ser das pessoas, radicalmente distinto daquele que prevaleceu a partir da Era Moderna, surgida com o Iluminismo, por volta século 17, perdurando até meados da centúria passada.
O espírito moderno tinha como nota distintiva a crença na razão e na ciência como vetor do progresso da humanidade. Já a atitude pós-moderna caracteriza-se por uma profunda desconfiança com relação a tudo e a todos e um permanente ceticismo quanto às verdades comumente aceitas.
As epistemologias que, desde os albores do modernismo, buscavam explicações abrangentes e sistemáticas para o universo, o homem e a sociedade passaram a ser sumariamente descartadas e substituídas por visões fragmentárias e efêmeras da realidade.
As pessoas deixaram de ter as comunidades afetivas, culturais, étnicas ou territoriais como pontos de referência, substituindo-as pelo individualismo, hedonismo, consumismo e niilismo.
As relações sociais, em consequência, passaram a se caracterizar pela impessoalidade, fugacidade, fragilidade e ambiguidade.
Para certos observadores, tais transformações resultam dos efeitos perversos do processo de globalização, que, além de acentuar a divisão entre ricos e pobres, ensejou a adoção acrítica de valores alienígenas, artificiais e transitórios, não raro eivados de rancor e preconceito.
Na verdade, estes não passam de meros modismos, difundidos quase instantaneamente pela mídia e internet, os quais, mal absorvidos, são logo descartados e substituídos por outros.
O próprio Estado-nação —principal centro de referência dos postulados humanistas, arduamente construídos pela civilização ocidental— também se encontra profundamente abalado diante dessa internacionalização desordenada, mostrando-se cada vez mais incapaz de proporcionar um mínimo de bem-estar aos seus jurisdicionados.
Em tal contexto, o pensador camaronês Achille Mbembe vaticina que as desigualdades tenderão a se aprofundar por toda a parte, fazendo com que a velha luta de classes assuma, cada vez mais, a forma de racismo, sexismo, chauvinismo e nacionalismo.
O combate ao terrorismo, por sua vez, poderá servir de pretexto para desencadear uma batalha de extermínio contra povos e crenças, enfim, contra tudo aquilo que pareça diferente.
Prevê ainda o surgimento de uma espécie de neodarwinismo social, sob o qual reaparecerá o apartheid, travestido de distintos aspectos, dando azo a novos separatismos, à construção de mais muros, à militarização de fronteiras e ao aumento da repressão policial interna com graves danos à democracia liberal.
Ainda há tempo de evitarmos a barbárie anunciada, desde que empreendamos um esforço comum para substituir esse clima de ódio e intolerância —o qual se alastra como um vírus— por uma cultura de paz e fraternidade.
RICARDO LEWANDOWSKI é professor de teoria do Estado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e ministro do Supremo Tribunal Federal
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