Um tiro no pé

Crédito: Lalo de Almeida/Folhapress SAO PAULO,SP. 06/05/2015. Escadaria do predio da Faculdade de Medicina da Universidade de Sao Paulo. ( Foto: Lalo de Almeida/Folhapress COTIDIANO) ***EXCLUSIVO***
Escadaria do prédio da Faculdade de Medicina da USP; professor Raul Cutait é contra abertura indiscriminada de novos cursos

O que vem acontecendo em relação à abertura indiscriminada de escolas médicas pelo país afora é um verdadeiro tiro no pé no futuro das atenções médicas. Estamos com 304 faculdades de medicina em funcionamento ou autorizadas, sendo que 102 delas foram liberadas a partir de 2013.

O argumento de que faltam médicos no Brasil é falacioso, uma vez que em alguns poucos anos estarão se formando ao redor de 30 mil médicos por ano, o que dará uma relação de 14 médicos por 100 mil habitantes, quase o dobro da dos Estados Unidos e mais do que o dobro da taxa do Japão!

Para completar o cenário, ocorre uma má distribuição de médicos pelo Brasil afora, fruto de um mercado de trabalho assimétrico, uma vez que, após muitos anos de estudo, poucos optam por trabalhar em locais carentes de recursos, com salários não estimulantes, sem maiores perspectivas de crescimento profissional e onde terão dificuldades para educar seus filhos.

Estender as atenções de saúde a toda a população é absolutamente correto, mas não é aumentando a esmo o número de médicos que se resolverá esse problema. Na verdade, está se criando um problema muito maior, que é o de se colocar no mercado profissionais mal preparados.

Explico: medicina não é um curso que pode se ensinar apenas com livros e aulas, pelo contrário. É preciso estar à beira do leito do paciente, não só para o aprendizado técnico, mas para entender o que é cuidar de pessoas, algo que não é intuitivo, mas que depende de orientação e muito de exemplos.

Em outras palavras, um futuro médico precisa aprender na graduação não apenas conhecimentos, mas comportamento, a fim de poder desenvolver relações médico-paciente de forma apropriada, em benefício de seus futuros pacientes.

Dentro dessa visão, estão colocadas as duas principais causas de uma catástrofe anunciada: não só faltam hospitais-escola para todas essas faculdades recém-criadas, como também não há disponibilidade de professores capacitados; na sequência, não há suficientes programas de residência médica, fundamentais para qualquer área clínica ou cirúrgica.

Achar que os profissionais locais, mesmo quando competentes, conseguirão ser bons professores de graduação é quase como acreditar em Papai Noel. Essa situação estimula, portanto, a figura do professor itinerante, algo cabível em cadeiras básicas, mas absolutamente indesejável na área clínica, onde os professores precisam no dia a dia viver os casos ao lado de seus alunos, serem seus mentores.

A entrada de médicos mal preparados no mercado de trabalho levará a um rebaixamento da qualidade do atendimento, hoje já questionável em inúmeras situações, fora o custo do atendimento de complicações evitáveis.

Os erros por imperícia que esses médicos mal formados cometerão deverão ser imputados exclusivamente a eles ou o governo deve arcar com sua parcela de culpa por permitir que estes se formem em faculdades pouco categorizadas?

E como ficam os que pagam alguns milhares de reais de mensalidade, muitas vezes à custa de enormes sacrifícios de suas famílias (cerca de 60% das faculdades abertas nos últimos anos são privadas)?

O exame para o exercício da medicina, à semelhança do que pratica a OAB, é uma alternativa, mas será justo deixar jovens na fase de seu maior idealismo serem enganados por escolas médicas sem competência para formá-los?

A proposta de moratória do atual governo, num esforço do ministro Mendonça Filho (DEM) com o apoio das principais entidades médicas, é alentadora.

Dará tempo para que se defina o que fazer do ensino médico no Brasil, criando-se oportunidade única para a criação e implantação de critérios eficazes não para coibir novas escolas, mas para que se mantenham só aquelas com competência educacional, à semelhança do que aconteceu há um século nos EUA, a partir do relatório Flexner.

A população brasileira não merece correr riscos desnecessários, e os jovens futuros médicos não merecem ser iludidos. Nossa sociedade só pode agradecer!

RAUL CUTAIT, professor do Departamento de Cirurgia da Faculdade de Medicina da USP, é cirurgião do Hospital Sírio-Libanês e membro da Academia Nacional de Medicina

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