Governo Bolsonaro aceitou garantia fora das regras e do prazo previstos em contrato na compra da Covaxin

Cláusula estipulava que fiança deveria ser bancária, e carta apresentada foi pessoal, tipo mais frágil de cobertura

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Brasília

Para assinar o contrato da vacina indiana Covaxin, o governo Jair Bolsonaro aceitou da empresa intermediadora uma garantia do tipo pessoal, fora do prazo e sem previsão contratual.

É o que mostram documentos obtidos pela Folha, que apontam mais uma quebra de contrato por parte das empresas responsáveis pelo negócio junto ao Ministério da Saúde.

Responsável pela intermediação na compra do imunizante, a Precisa Medicamentos entregou ao ministério uma “carta de fiança” emitida pela empresa Fib Bank Garantias S.A., sediada em Barueri (SP).

A carta afiança um valor de R$ 80,7 milhões, equivalente a 5% do valor contratado, R$ 1,61 bilhão.

A Precisa aparece como “afiançada”. O “beneficiário”, conforme o documento, é o Ministério da Saúde, por meio do Departamento de Logística em Saúde da Secretaria-Executiva.

Naquele momento, o diretor do departamento era Roberto Ferreira Dias e o secretário-executivo, coronel Elcio Franco, a quem cabia a negociação de vacinas.

O primeiro foi demitido após ser acusado de cobrança de propina no mercado paralelo de imunizantes. O segundo é alvo central da CPI da Covid no Senado e tem hoje um cargo de confiança na Casa Civil da Presidência.

A garantia dada deve ser acionada em caso de descumprimento de cláusulas pela Precisa, intermediária da indiana Bharat Biotech. O objetivo é garantir a “operação financeira e logística” do contrato.

A própria Fib Bank descreve o documento entregue ao ministério como uma “fiança fidejussória”. O site da empresa também afirma que o serviço prestado é o de “garantia fidejussória”, que consiste em uma “garantia pessoal, seja ela de pessoa física ou jurídica”.

O contrato entre Ministério da Saúde e Bharat Biotech, assinado pela Precisa Medicamentos no papel de representante, não prevê garantia do tipo pessoal.

Segundo o contrato, assinado em 25 de fevereiro, a garantia no valor de US$ 15 milhões (R$ 80,7 milhões) deveria ser dada por uma de três modalidades possíveis: caução em dinheiro ou em títulos da dívida pública; seguro-garantia; e fiança bancária.

Uma garantia do tipo fidejussória não corresponde a uma fiança bancária ou a um seguro-garantia, segundo dois especialistas em direito civil ouvidos pela Folha.

A garantia fidejussória é como se fosse um aval pessoal, sendo bem mais frágil do que as outras garantias especificadas no contrato para a compra da Covaxin, conforme os especialistas.

A própria expressão usada pela FIB Bank, “fiança fidejussória”, causa estranheza, segundo os especialistas —ouvidos pela reportagem de forma reservada por se tratar de um caso específico.

Uma decisão da Justiça comum em São Paulo já rejeitou, em outro caso, uma garantia de R$ 480 mil prevista em “carta de fiança” emitida pela FIB Bank Garantias.

“Verifico que a FIB Bank, emissora da carta de fiança, não é instituição bancária e, desse modo, a garantia apresentada não é bancária mas fidejussória, e por isso não pode ser aceita, por ausência de segurança jurídica suficiente”, cita uma decisão judicial de março de 2020.

À Folha a FIB Bank confirmou que não está cadastrada no Banco Central e que não é uma instituição financeira, tampouco uma empresa seguradora. Trata-se de um “fundo garantidor de crédito, que atua com a oferta de garantias fidejussórias”, afirmou em nota à reportagem.

“A companhia está devidamente constituída, conforme previsto em lei, e tem regular registro perante os órgãos de administração pública”, disse a FIB Bank. “O patrimônio da companhia está lastreado em bens imóveis integralizados em seu capital social, assim como bens e direitos e moeda corrente.”

A “fiança fidejussória” é cada vez mais utilizada por ter um custo menor em comparação aos “abusivos preços cobrados” por bancos e seguradoras, conforme a nota.

Sobre as negociações com a Precisa, a FIB Bank afirmou existir sigilo. “A utilização e adequação da garantia contratada é analisada e conduzida por cada cliente.” A empresa enviou duas decisões judiciais que validaram o uso da garantia fornecida a outros clientes.

No caso do contrato com a Saúde, a Precisa descumpriu ainda o prazo para apresentação da garantia, o que foi aceito pela pasta sem contestação.

O contrato estabelece que a garantia deveria ser entregue num prazo de dez dias após a assinatura do termo. Em email à Precisa e ao advogado Túlio Belchior Mano da Silveira, representante da empresa, a área técnica do ministério encaminhou cópia do contrato assinado em 25 de fevereiro e cópia da nota de empenho, com autorização do gasto de R$ 1,61 bilhão, emitida três dias antes.

“IMPORTANTE: conforme previsto na Cláusula Sétima, o prazo final para a apresentação da garantia contratual é 07/03/2021. Cumpre esclarecer que a vigência final da garantia deve compreender o prazo total de vigência do contrato: 25/02/2021 a 25/02/2022”, cita o email enviado.

A “carta de fiança” da FIB Bank foi emitida e assinada em 17 de março, dez dias depois do prazo contratual. O vencimento estipulado foi 17 de março de 2022, também distinto do especificado pelo ministério.

A quebra de cláusulas contratuais sobre garantias se soma a outras quebras no curso do processo de compra da Covaxin.

Todos os prazos de entrega das doses foram desrespeitados; nenhuma chegou ao Brasil até agora. Além disso, a Precisa tentou, por duas vezes, garantir um pagamento antecipado de US$ 45 milhões na importação de um primeiro lote de 3 milhões de doses, o que não ocorreu, nem a entrega nem o pagamento.

O pagamento antecipado apareceu em duas faturas (as “invoices”) emitidas por uma empresa em Singapura, a Madison Biotech, e fornecidas ao ministério pela Precisa, numa primeira tentativa de importação.

Essas “invoices” são investigadas pela CPI e por Polícia Federal, Ministério Público Federal, TCU (Tribunal de Contas da União) e CGU (Controladoria-Geral da União). Suspeitas de corrupção no contrato são investigadas em todas essas frentes.

O contrato foi suspenso pelo governo Bolsonaro por decisão da Corregedoria-Geral da União, que funciona no âmbito da CGU. O Ministério da Saúde avalia anular a contratação.

Em uma audiência na Câmara nesta quarta-feira (14), o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, disse que a pasta não conta, para o Programa Nacional de Imunizações e campanha contra a Covid-19, com doses da Covaxin.

Na CPI, durante o depoimento prestado nesta quarta, a diretora-técnica da Precisa, Emanuela Medrades, foi questionada pelos senadores sobre a existência de garantia no negócio, como prevê o contrato. Ela respondeu que sim, mas sem fornecer detalhes a respeito da garantia dada.

Nem a Precisa nem o ministério responderam aos questionamentos da reportagem sobre a garantia entregue após o contrato.

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