Arraiá na cracolândia (#vemprarua, gente)
Já passei pela cracolândia várias vezes, mas nunca tinha ido a ela. Até sábado (29). Sábado teve festa junina lá.
E não estou falando de cercadinho VIP com vista privilegiada para a desgraça alheia, "comme il faut" para essa moçada especialista em misturar expressões francesas, análises sagazes e imagens mentais esquisitas que dariam bons nomes de esmalte (Savana Glacial; Doritos Esfuziante; Galvão Bueno de Cócoras Narrando "É Pau, É Pedra, É o Fim do Caminho").
Era uma festa no meio da alameda Dino Bueno (região central), onde me disseram que fica a "cracolândia mais pesada" (a "light" seria mais próxima à Sala São Paulo, também na Luz). Divulgada na internet, a comemoração queria atrair gente de fora. Mas os "locais" constituíam o principal público-alvo.
E, de fato, lá estavam uns cem "noias" para 20 hipsters (e dois sujeitos que eu ainda não descobri se eram uma coisa ou outra). Estava também a cartunista Laerte, linda de jaqueta jeans, bota de cano alto e saia curtinha preta --ao que me consta, na volta, dispensou carona e saiu andando pela região, atrás de transporte público.
Também compareceram ativistas que atuam na região, como a defensora pública Daniela de Albuquerque (que fazia aniversário e ganhou bolo com 'parabéns, Daniela!' escrito em glacê rosa) e Tina Galvão, mentora do projeto Aquele Abraço (uma senhora de 70 anos que literalmente sai pelas ruas do centro abraçando sua causa, os craqueiros).
E ainda: donos de bares da área e moradores dos prédios de dois andares da alameda. Um dos organizadores, o arquiteto Felipe Villela, me contou que foram eles que ajudaram a bancar a festa, com uma vaquinha. Cachorro-quente, suco e pé-de-moleque liberados.
Duas emissoras de TV ficaram de ir. Uma furou. A outra chegou lá, perguntou se havia equipe de segurança, desacreditou que não seria necessário e zarpou fora rapidinho.
Uma pena. Se tivessem ficado para a festa, saberiam que teve: quadrilha com todo mundo junto e misturado; quem risse de mim quando perguntei se alguém tinha isqueiro para acender meu cigarro; depoimentos como o de um senhor dizendo que a polícia faz os usuários de crack deitarem em cima de cocô e xixi deixados ao ar livre; Laerte de cabeça torta, tentando discernir o que estava escrito de canetinha no paletó amarronzado de um morador de rua que cantava samba (só consegui ler: POETA).
A certa hora, tentei ver se o 3G funcionava (sim, funcionava, e a rede wifi liberada se chamava ZUMBILÂNDIA). Parece tolo agora: só depois de meia hora me senti confortável para usar meu iPhone no meio da galera.
Mais tolo ainda, no entanto, é fingir que o medo não está aí (e você, nem aí para ele). A gente tem medo, sim. De tanta coisa... E isso geralmente provoca reações nervosas e imediatas, das quais você tem vergonha depois, mas não consegue evitar na hora. Como o engajado cientista social que, voltando para casa sozinho na madrugada, troca de lado na calçada ao ver um "tipo estranho" se aproximando.
Ainda não inventaram antídoto para os "fobiafóbicos" de São Paulo.
Arrisco a dizer, contudo, que o slogan tão ouvido nas manifestações também se aplica aqui: #vemprarua, gente. Esse medo de ter medo de ter medo não tá com nada. Ou vai acabar como uma daquelas pessoas escondidas atrás de uma tela de computador, citando Legião Urbana enquanto encara esfuziantes Doritos na janta?