Sob o clima mais infernal dos últimos 71 anos, paulistano improvisa para se refrescar

A temperatura batia os 27ºC às 23h da última segunda-feira (3), quando acabou a energia elétrica na casa de Marxseny Pinho, 23, em Santana, na zona norte. Sem ficar de cabeça quente, ele logo providenciou a solução: levou seu colchão para a varanda e ali dormiu. "A ideia foi da minha mãe, que lembrou da letra 'quando todos praguejavam contra o frio, eu fiz a cama na varanda'", explica, em referência à música de "Eu Nasci Há Dez Mil Anos Atrás", de Raul Seixas. "Como foi bom, continuo dormindo lá."

As altas temperaturas na capital têm feito paulistanos adaptarem seus hábitos. Enquanto ventiladores esgotam nas lojas, ternos têm sido renegados e guarda-chuvas passaram a desfilar abertos pelas ruas contra os raios solares.

Mas tem gente que vai além —seja trabalhando em casa sem roupas, dormindo dentro da banheira ou resgatando leques e chapéus da gaveta empoeirada da avó.

Faz sentido: nos últimos dias, os termômetros têm passado dos 30ºC. Além do calor e do sol forte, quase não tem chovido.

A capital paulista teve em janeiro o mês mais quente desde que o Instituto Nacional de Meteorologia começou a monitorar o clima, em 1943. A média foi de 31,9ºC. Há uma semana, no dia 2, foram registradas temperaturas de até 35,9ºC.

Na tarde de quarta-feira (5), o produtor cultural Paulo Capello, 39, saiu da piscina apenas para atender a reportagem. Ele tem se refrescado na água cinco vezes por semana desde que comprou uma piscina de plástico de 4.600 litros no começo de janeiro. "Arrumei mais amigos, agora sou um dos caras mais simpáticos da turma", brinca. No dia 11, quando fez aniversário, a convocação para a festa pedia que convidados comparecessem em roupa de banho.

"Mas não pense que eu desperdiço água", ele avisa. Desde que chegou à casa de Paulo, a piscina foi enchida uma única vez. Para economizar, ele utiliza uma série de produtos químicos que limpam a água.

Menos popular é o corretor de seguros Antônio Santos, 48, que na última quinta-feira, ao meio-dia, circulava pela av. Paulista de terno, gravata e sapato —todos ensopados.

"Minha profissão não permite outra roupa. Fujo para a sombra, mas estou sempre suado. Percebo que as pessoas não chegam muito perto de mim. Fazer o quê?".

Fonte: Instituto Nacional de Meteorologia; Editoria de Arte/Folhapress
Veja quais foram os meses mais quentes dos últimos 71 anos; janeiro está no topo
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A resposta está na ponta da língua da autônoma Kiel Pimenta, 42. Moradora do primeiro andar de um prédio abafado na rua Augusta, região central, onde também trabalha sozinha, ela descobriu como ficar em paz no verão: nua.

"Desde o início da estação, só me visto quando tenho que passear com o cachorro ou quando tocam a campainha", diz ela, que também é subsíndica do edifício. "Outro dia o pintor tocou lá em casa cedinho. Ia abrindo a porta quando lembrei que estava pelada. Foi quase."

No Rio de Janeiro, na terça-feira, um funcionário público chegou a ir ao trabalho de saia. Proibido de usar bermuda, ele aproveitou uma brecha na lei e incorporou (literalmente) o traje feminino —esse, sim, liberado.

As temperaturas elevadas fizeram até o presidente do TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo), desembargador José Renato Nalini, suspender a obrigatoriedade de advogados usarem terno e gravata. "Estávamos notando que é uma situação anormal", disse Nalini. "O uso do paletó e gravata sempre foi questionado. É um hábito adotado dos europeus, sendo que nosso clima não permite isso. Mas chega uma época em que a própria natureza se vinga das convenções." A medida publicada na terça-feira no Diário da Justiça Eletrônico deve valer até 21 de março.

Fonte: Instituto Nacional de Meteorologia; Editoria de Arte/Folhapress
Dos dez dias mais quentes dos últimos anos, dois foram nesse mês de fevereiro
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CLIMA CORPORATIVO

Sinal dos tempos, e do clima, algumas empresas começam a abandonar a formalidade a favor dos trópicos. Os 3.000 funcionários da empresa de tecnologia Totvs em São Paulo foram liberados da roupa social no trabalho. Há duas semanas, o novo "dress code" permite o uso de bermuda, camiseta e tênis. "Só não podem os 'excessos', como camisa de time de futebol, chinelo e shorts de academia", explica Cristiano Brasil, diretor de RH da empresa.

Há até quem acredite o terno esteja caindo em desuso no país. "Fica até feio, você vai almoçar com o cliente e chega suando. Não é muito agradável", diz Tullio Formicola Filho, 50, presidente da Crocs. "No começo da minha carreira, usava terno todo dia. Hoje tenho um para ir a casamentos."

No escritório de uma empresa de tecnologia paulistana, a informalidade permite que se trabalhe de bermuda e chinelo enquanto é possível tomar um sorvete e até uma cerveja, ofertados pela firma. "Tínhamos dois aparelhos de ar-condicionado e compramos mais dois, mas eles não dão conta. O prédio não é construído com isolamento térmico", explica Eduardo Lhotellier, 29, sócio-fundador da GetNinjas.

Apesar do "open bar", os funcionários dizem ser contidos. "As pessoas não bebem durante o expediente porque você fica meio improdutivo", conta o engenheiro de produção Bernardo Srulzon, 24. Mesmo com bom senso, Manuela Calumby, sócia da Search, consultoria em recursos humanos, acredita que esse não é um exemplo a ser seguido por outras empresas. "Tem de lembrar que cada um tem um limite, principalmente para bebida."

É O VERÃO DO LEQUE

"Aaah, é o leque, é o leque, é o leque, é o leque, é o léee!" Com ajuda ou não do funk adaptado, o alagoano Jorge Guedes, 40, não passa cinco minutos sem vender um leque na rua 25 de março.

Enquanto contava para a sãopaulo que seu negócio é sazonal ("no inverno vendo 'tira-bolinhas' de roupas, na chuva, vendo capas, no verão, vendo leques"), foi interrompido por Renata Melo, 30. "Me vê dois, rápido, moço."

Era o primeiro leque que comprava na vida. "Tá infernal, não aguento mais. Vi umas moças usando e vim só para comprar", contou, se abanando.

Além do apetrecho vendido por ambulantes, outro hit do verão na 25 é o ventilador portátil. Totalmente esgotado, era vendido por R$ 27,90.

Em seguida vinha o ventilador de led com USB, "para executivos". A pequena peça metálica, com luzes que vão em degradê do roxo ao amarelo, fica presa ao computador e pode ser encontrada por R$ 15 na galeria Pagé. "Dá para vender uns 40 por dia", disse, ofegante, o gerente Tadashi Nagata, 49.

Ali perto, a fachada de uma loja sem nome estava coberta por chapéus (de R$ 10 a R$ 25) e guarda-chuvas (R$ 10).

"No verão, saem 80 de cada por dia", disse a vendedora, que aproveitou para corrigir a reportagem.

"Não é guarda-chuva, não, senhor. É sombrinha com proteção UV", disse, apontando para o forro metálico.

TOP 5 DA 25

Os cinco itens mais vendidos da rua 25 de Março na semana passada:

  1. Leque = R$ 4 (três por R$ 10)
  2. Ventilador de mão com pilha = R$ 27,90 (esgotado)
  3. Sombrinha com protetor UV, camada prateada que bloqueia raios solares = R$ 10
  4. Chapéu de palha, com ou sem faixa = R$ 10 a R$ 25
  5. Ventilador executivo, com USB para ligar no computador = R$ 15

POR QUE FAZ TANTO CALOR?

Segundo o Instituto Nacional de Meteorologia, fatores como águas quentes "estacionadas" entre o Sudeste e o Sul do país e águas frias no oceano Atlântico sul fizeram com que São Paulo ficasse sem chuvas.

A previsão para os próximos dias é ensolarada, mas tenebrosa: as temperaturas devem continuar altas. "Em princípio, o calor não deve diminuir até o dia 25 de fevereiro [uma terça-feira]", afirma o meteorologista Marcelo Schneider.

O pior verão das nossas vidas está longe de acabar.

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