Mulheres se impõem contra cantadas de rua e criam grupos para entender feminismo

É um ritual religioso. Todas as manhãs, a representante de vendas Natália Jakovac, 30, faz uma oração budista antes de levar o filho para a escola. Mas à medida que ela percorre as ruas da Barra Funda, onde mora, sua paz se esvai.

Os comentários maliciosos vindos de homens pelo caminho acabam com a sua paciência. "Dá muita raiva e nojo. Você se sente nua", desabafa. Quando está sem o filho, ela não deixa barato. "Reclamo mesmo. Mas eles viram as costas."

A cantora Rosa Ferraz, 26, é outra que não tem medo de rebater uma cantada de mau gosto. "Já tive uma discussão com um cara que não conhecia porque recusei uma carona dele", conta. "Às vezes, você está em um dia ruim e ainda tem de ouvir esses comentários nojentos."

São poucas as mulheres que batem de frente com os homens que mexem com elas, mas muitas têm achado outras maneiras de reclamar.

Enquanto as redes sociais servem de ferramenta de debate e campanhas virtuais para as que se incomodam com o problema —mas não pretendem ser ativistas—, há na cidade ao menos cinco cursos e espaços que discutem o feminismo.

Nos relatos sobre assédio sexual na internet, internautas têm postado fotos dos agressores captadas por celulares, principalmente dentro de trens e ônibus. Nos comentários, é comum ver menções à campanha "Chega de Fiu Fiu".

Em setembro do ano passado, uma enquete virtual de mesmo nome perguntou o que as mulheres achavam das cantadas. As respostas de 7.762 participantes mostraram que apenas 17% das entrevistadas as consideram "algo legal" e que 81% já deixaram de fazer algo temendo o assédio.

Após o resultado, a pesquisa virou uma campanha. Slogans como "Caminhar por um espaço público não torna meu corpo público" e "Você acha que gritar 'ô gostosa' na rua é elogio? Sua mãe não" fazem parte do material que passou a circular pela internet.

"Essa liberdade que existe de poder agredir uma mulher na rua pode levar a atitudes muito mais violentas. Não é algo que pode ser tratado como normal", diz a jornalista Juliana de Faria, 29, criadora do site Think Olga, que discute temas femininos e que divulgou a pesquisa.

"Quando um cara te chama de linda na rua, está invadindo o seu espaço", diz a socióloga Bárbara Castro, 29, que faz parte do projeto. "O que queremos é uma mudança de mentalidade da sociedade a respeito disso."

MULHERES MACHISTAS

Há duas semanas, 30 mulheres e dois homens que fazem parte da comunidade virtual do Think Olga se encontraram pessoalmente pela primeira vez no centro de São Paulo. A ideia era discutir a segunda etapa da campanha, que terá um mapa interativo para que as vítimas registrem os lugares onde sofreram assédio.

A publicitária carioca Luíse Bello, 24, veio do Rio de Janeiro apenas para a reunião. "Quando descobri a campanha ["Chega de Fiu Fiu"] vi que não era só eu que me sentia mal com isso", conta ela, que afirma ter se "aprofundado" no feminismo desde então. "Tem gente que diz que as feministas são mal amadas. Toda mulher é mal amada pela sociedade, temos que pensar sempre no nosso comportamento, em coisas como ter que mudar de roupa para sair", diz.

A nova plataforma do "Chega de Fiu Fiu" deve entrar no ar neste mês. A ideia é que o material publicado sirva como uma base para gerar outras campanhas que alertem sobre a violência contra a mulher.

Segundo dados da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, em 2013 foram registradas 10.855 ocorrências de lesão corporal dolosa contra mulheres. O total é menor do que o de ocorrências registradas no ano anterior, 12.523 —uma queda de 13%.

Editoria de Arte/Folhapress

De acordo com a delegada Maria Raquel Coreggio, da 5ª Delegacia de Defesa da Mulher, na zona leste, o número de agressões, no entanto, não caiu. O que cresceu foi o medo de as mulheres de registrarem boletim de ocorrência. "Desde o ano passado, elas não podem mais retirar uma queixa que foi feita", explica. "E, mesmo assim, é comum muitas delas não desejarem dar continuidade ao processo porque fazem as pazes com o marido."

Trata-se de um tipo de atitude comum na cultura brasileira, segundo a historiadora Mary Del Priore, autora do livro "Histórias e Conversas de Mulher" (R$ 29, 312 págs., Planeta). "As mulheres também são machistas quando não deixam seus maridos lavarem a louça ou os filhos meninos fazerem as camas", diz. "Não é no setor público que se operam as grandes transformações, mas no privado. É lá que cada uma de nós tem de suprimir a pequena machista que existe dentro de si."

A delegada Maria Raquel diz ainda que as mulheres que se sentirem ofendidas com um assédio na rua podem, sim, registrar um boletim de ocorrência. "O agressor vai receber uma intimação, terá que prestar depoimento e pode ter de prestar serviço comunitário como pena", afirma.

FEMINISTA FORMADA

"Sou feminista porque é o que mais se aproxima das coisas nas quais eu acredito", diz a ilustradora Evelyn Queiróz, 24, que não faz parte de nenhum grupo ou movimento. Há um ano ela publica na internet os desenhos de uma personagem que criou.

Sob o nome Negahamburger, Evelyn exerce seu feminismo fazendo retratos de mulheres fora dos padrões (negahamburguer.com). "Ouvia histórias de amigas gordas, negras, fora do padrão. E também de algumas dentro do padrão que eram tachadas como fúteis", conta.

As ilustrações fizeram tanto sucesso que ela começou a se inspirar em relatos de mulheres desconhecidas, que passaram a mandar suas histórias para a artista por e-mail. No último dia 15, Evelyn lançou o livro "Beleza Real", feito com esses desenhos e viabilizado com R$ 40 mil arrecadados pela internet.

Quem procura mais respostas sobre o que é o feminismo pode se inscrever em algum dos cursos sobre o assunto na cidade. Há ao menos cinco em andamento ou com inscrições abertas.

Um deles chama atenção por uma exigência: "Os homens que quiserem participar do curso deverão entrar vestidos de mulher". O aviso está na página que chama para as 12 aulas sobre filosofia feminista com a filósofa Marcia Tiburi, em Pinheiros.

Segundo Tiburi, a ideia surgiu depois que ela foi agredida verbalmente por um homem no final do ano passado após recusar um copo d'água. "Estava em uma galeria de arte e falava com alguns amigos sobre como o pensamento feminino foi ignorado pela filosofia. De repente, esse homem, que estava no grupo, me xingou depois que recusei a água que ele me ofereceu", conta Márcia. "Nunca tinha passado por uma agressão dessas. O feminismo faz os homens 'passarem mal'. Decidi que faria um curso sobre isso e que os homens teriam que se vestir de mulher".

Para ela, a exigência não pretende restringir a participação do sexo masculino. "Tem de ser muito homem para se vestir de mulher", diz. Até a conclusão desta edição, dois já haviam se matriculado.

É coisa que Jean Carvalho, 21, certamente não faria. Ele se diz "antifeminista" e participa de uma comunidade virtual intitulada "Mulheres Machistas". O estudante acredita que o movimento luta contra os alvos certos (assédio, abusos sexuais, a diminuição da mulher), mas atira para direções erradas (usando a nudez, de forma masculinizada e pregando o hedonismo).

SEM FOGUEIRA DE SUTIÃ

Longe do perfil de manifestantes que cobrem o rosto ou tiram a roupa para protestar, um grupo de mulheres se reúne todas as semanas em um imóvel na Pompeia para discutir um "feminismo mais feminino".

O sobrado de 250 m² apelidado de Casa de Lua é mantido por 30 mulheres. O ambiente serve como local de trabalho e ponto de encontro.

Segundo a professora de comunicação Bianca Santana, 30, cofundadora da casa, a ideia é discutir de maternidade até cultura e tecnologia. "Depois que tive filhos, não tinha com quem falar de política. Esse espaço serve para isso", diz. A programação do local tem festas e temas passam por automaquiagem, astrologia e ioga. "A sociedade hoje desconsidera, por exemplo, como o ciclo menstrual afeta o trabalho das mulheres", afirma Bianca.

Contra o 'fiu fiu' ou de olho nas fases da Lua, todas as discussões feministas são saudáveis, segundo a historiadora Mary Del Priore. Para ela, esses debates procuram dar uma direção aos múltiplos papéis que as mulheres têm de assumir: mães, amantes, esposas, trabalhadoras, donas de casa. "O momento não é fácil e é melhor haver o barulho de discussões do que o silêncio."

CURSOS E ESPAÇOS

O que pensam as feministas + Sexo, gênero e feminismo: A socióloga Marília Moschkovich comanda conversa sobre aborto, pornografia e prostituição. No mesmo dia, explica os conceitos de sexo, gênero e feminismo. Eventos separados.

oGangorra. R. Mourato Coelho, 1.344, Pinheiros. Dia 22/3, das 13h às 16h (O que pensam as feministas); das 16h30 às 19h30 (Sexo, gênero e feminismo). R$ 40 cada um. cinese.me

Filosofia feminina: Curso de 12 aulas com a filósofa Marcia Tiburi. A ideia é contar como a filosofia deixou o pensamento das mulheres de lado ao longo da história.

Espaço Cult. R. Inácio Pereira da Rocha, 400, Pinheiros, tel. (11) 3032-2800. e 12/3 a 28/5, das 20h às 22h. R$ 1.080. espacorevistacult.com.br

O Estado e o corpo: uma genealogia dos estudos feministas e de gênero: Aborda temas como subordinação e identidade de gêneros em espaços públicos e privados.

PUC-SP. R. Monte Alegre, 984, Perdizes, tel. (11) 3670-8000. De 5/4 a 7/6, sábados, das 8h às 12h. R$ 818. www.pucsp.br

Casa de Lua: Espaço de encontro e trabalho para mantenedoras e convidadas.

R. Engenheiro Francisco Azevedo, 216, Vila Madalena, tel. (11) 3582-9721

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