Repórter que viu massacre do Brasil in loco relata montanha-russa sensorial

No início, era a euforia: "Alemão, qual é a tua? Minha salsicha é maior do que a sua". A esperança ainda vencia o medo. Torcedores desfilavam com orgulho máscaras de Neymar, estrategicamente distribuídas por uma agência de publicidade (minha primeira frustração foi descobrir que não forneceriam também perucas de David Luiz).

Mas alegria de pobre dura pouco —e nesse caso de rico também. A excitação era alta até o primeiro gol da Alemanha e resistiu bravamente até o segundo, ao contrário da seleção brasileira. Depois, enquanto os gols iam se seguindo como numa partida de pebolim, a euforia foi dando lugar à vergonha.

Arquivo Pessoal
A jornalista Adriana Küchler antes do início do jogo no Minerão, entre Brasil e Alemanha, em 8 de julho de 2014
A jornalista Adriana Küchler antes do início do jogo no Minerão, entre Brasil e Alemanha, em 8 de julho de 2014

A sensação era como se você estivesse em uma divertida festa de família e, de repente, sua mãe saísse correndo pelada. Você olha atônito, não entende bulhufas. Você ama sua mãe incondicionalmente, é óbvio, e sabe que deve apoiá-la não importa o que aconteça. Mas fica difícil torcer por ela enquanto ela comete o vexame do século. Os gritos continuavam, mas começavam a sair entre apáticos e embargados: "Manhê!", ops, "Brasil, cof, cof, Brasil!"

O medo chegou logo em seguida —medo de o pesadelo não terminar nunca. E a raiva disparou na sequência entre os torcedores até então amigáveis. As brigas, sempre entre brasileiros, começaram a pipocar em volta de mim, num setor em que o ingresso custava no mínimo R$ 1.320 (quem comprou de cambista chegou a pagar três vezes esse valor).

Uma discussão começou porque um torcedor mandou o outro se sentar, e o outro não quis. Outra por um esbarrão besta no corredor. Ou por qualquer outra bobagem do tipo. Só sei que voou cerveja e safanão pra todo lado. Sobrou até pra mim, que tentava fotografar um dos furdunços e acabei ouvindo palavras dedicadas normalmente à mãe do juiz.

A essa altura, os torcedores arrependidos ou humilhados começavam a ir embora em peso. Os entediados preferiam assistir às brigas à partida.

Resiliência, teimosia, esperança, apatia ou falta de noção. Foi o que sobrou para aqueles que resistiram até o fim e aplaudiram de pé o sétimo e último gol da Alemanha, num misto de muita inveja e um tanto de respeito. Os alemães, que até então vinham torcendo encabulados para não chutar cachorro morto, verde e amarelo, retribuíram os aplausos no primeiro e único gol do Brasil —por dó e compaixão. Os brasileiros se consolaram: antes eles que os argentinos.

No fim, era o luto. Nenhum riso, nenhuma alegria, mais de mil palhaços no salão da rodoviária de Belo Horizonte. O clima era de um velório em que o "dress code" amarelo substituiu o tradicional preto. E a aparência de um campo de refugiados, com corpos pintados jogados pelo chão ao lado de cada tomada para carregar um celular.

Tentei antecipar minha passagem para São Paulo para diminuir o sofrimento. Em vão. Não era o nosso dia.

ANATOMIA DE UMA DERROTA

Psicanalista e professor da PUC Renato Mezan comenta os sentimentos ao longo do jogo

Euforia (antes do jogo)
"Os torcedores projetam nos atletas a ideia de um Brasil idealizado, criativo, disciplinado, que sabe trabalhar em conjunto. Essas expectativas foram frustradas por um time traumatizado, longe de encarnar os ideais projetados nele."

Vergonha (2x0)
"É um sentimento ligado à honra, à imagem que alguém acha que tem diante dos outros. E os brasileiros pareciam um time de segunda divisão fazendo um treino com a seleção alemã. O vexame da seleção deixou 200 milhões de brasileiros 'vexaminados': 'Como a gente vai olhar para os argentinos depois disso?'"

Raiva (5x0)
"O público precisa extravasar a raiva. Como não pode jogar garrafas no campo, agride o vizinho ou quem passa pela frente. E encontra formas absurdas de extravasar, como queimar ônibus, em vez de protestar contra a CBF."

Apatia (6x0)
"O público ficou estarrecido, estupefato, diante de um ideal que se esfacelou. Isso acontece no Brasil, que é a 'pátria de chuteiras'. Na Alemanha, eles conseguem discriminar a seleção do povo alemão."

Luto (7x1)
"É um sentimento ligado à perda de um objeto querido. Difícil falar em luto, pois os brasileiros não perderam algo em definitivo. Esse acontecimento pode servir para motivar reformulações profundas no futebol, como aconteceu em 1950."

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