Editora revisita restaurante francês tradicional que faz 60 anos em SP

Stan Getz e J.J. Johnson estão a tocar a versão mais delicada de "My Funny Valentine". E o passado vai se refazendo na mente. As flores, o largo do Arouche, a taça de vinho, na qual só se molha a boca para o brinde.

Era maio de 1991. Eu beirava os dez anos de idade. Naquela noite, em que comemorávamos os 11 anos de minha irmã mais velha, chegamos em casa, em uma vila adorável, mais tarde que o habitual. Pois o sono não impediu que eu realizasse meu ritual sagrado. Coloquei-me a escrever no meu diário, de caneta rosa, minha primeira experiência gastronômica que marcou história. A minha. A de São Paulo.

Estávamos eu, meu pai, minha mãe e irmã no La Casserole —o restaurante francês, elegante, "de adultos", à época, com quase 40 anos de existência. Achei tudo ali "superchique", escrevi, como acho até hoje, do alto de seus 60 anos, ainda a embelezar o centro —charmoso, acolhedor com uma atmosfera de antigamente, que ajuda a contar história.

Naquele registro do começo dos anos 90, descrevo com pompa o "coquetel de frutas" que tomamos, a taça de vinho da qual pude bebericar um gole na hora do brinde, o hadoque que pedi como prato principal, os profiteroles, que resistem ainda hoje, com receita intacta, para alegrar os parabéns.

Nem dez anos e eu pedi um hadoque defumado, embalado em manteiga derretida, servido com creme de espinafre e ovo pochê (que vez ou outra surge no menu).

Meu pedido foi direto e reto por um motivo óbvio: a descrição, que li vagarosamente no cardápio, lembrava o hadoque que vovó fazia em dias felizes. Ela deixava as postas a descansar no leite, depois as besuntava na manteiga e, por fim, as regava delicadamente com creme de leite fresco, para gratinar ao forno.

Os profiteroles ainda hoje são motivo de festa, massa leve e aquele chocolate que embala os corações. Aprendi a comemorar muitos aniversários no Casserole. E, ao longo dos anos, aprendi mais sobre esse restaurante que resiste no centro de São Paulo.

Soube, por exemplo, que Heitor Villa-Lobos (1887-1959) já passou por ali —e isso alimenta ainda mais a magia daquele lugar. Quiçá minha fantasia. Meu avô ensinou-me, desde pequena, a apreciar música erudita brasileira.

Ao passado mais remoto: foi o francês Roger Henry, ex-prisioneiro dos alemães durante a Segunda Guerra Mundial, ao lado de sua mulher, dona Touna, de família judia também fugida da guerra, que, em 1954, abriu as portas do número 346 do largo do Arouche, em frente à banca de flores, a mesma pela qual passeamos em família para comprar flores à aniversariante.

Se voltasse ao tempo, poderia ter tido o prazer de ter Roger, o parisiense pai de Marie-France Henry —que está à frente da casa desde 1987— à minha mesa, a finalizar o steak tartare que permanece no cardápio —e eu não canso de pedir. Um ritual amigável. A carne cortada na ponta da faca. A mostarda de Dijon. A salsinha. A gema de ovo. A cebola. A alcaparra. O molho inglês.

Mas, de toda sorte, ter Marie-France por perto, a transitar entre as mesas do salão, é uma alegria, em si. A anfitriã do sorriso que se estende de lado a lado do rosto. Com doçura, ela nos serve os mesmos clássicos franceses, que ficam horas e horas no fogo, sem pressa. O boeuf bourguignon, que ressalta técnicas clássicas francesas, o caldo de carne, o músculo
submetido a um cozimento lento.

Com o tempo, engraçado, fui achando o Casserole cada vez mais elegante e mais fino e mais sofisticado e, em um só tempo, mais acolhedor e mais carinhoso e mais familiar. E mais histórico. Para a minha vida. E para São Paulo.

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