'Faço música para cafetinar a realidade', diz o rapper cearense Don L

Don L é o Gabriel Linhares Rocha forjado à vista e à brisa do mar de Fortaleza e "tunado" com sangue e champanhe. "A pior pobreza é a de espírito. Pessoas que não dão o sangue pelo que acreditam. Que não entendem o valor de um grande momento para a eternidade", afirma o rapper cearense de 32 anos.

O músico é um dos membros fundadores do grupo Costa a Costa, idealizado em 2005 e que, em 2007, lançou a mixtape "Dinheiro, Sexo, Drogas e Violência de Costa a Costa". O conjunto, que ainda soma Nego Gallo, Junior D, Preto B e Flip Jay, já foi agraciado com o prêmio Hutúz na categoria melhor grupo do Norte/Nordeste.

"Lançamos o trabalho sem medo de ser a gente mesmo, de sermos ambiciosos, e impulsionamos nossa geração a fazer o mesmo. O rap brasileiro estava se perdendo num sentimento de desistência que começou a virar uma apologia à derrota, como se o legal fosse ser fodido e assumir a posição de vítima", conta Don L.

Em outubro de 2013, ele lançou sua mixtape solo "Caro Vapor / Vida e Veneno de Don L", cujas faixas como "Morra Bem, Viva Rápido", "Chips" e "Sangue é Champanhe" são rimadas em métricas variadas e letras hedonistas e sensuais.

"Faço música para chapar, pra colocar um filtro na realidade. O que não necessariamente é uma fuga. São novos estados de consciência que podem também despertar ambições, desmascarar verdades íntimas, mentiras públicas. Cafetinar a realidade", explica.

"Tenho uma vida toda pela frente, e eu quero a minha parte." Leia abaixo a entrevista com Don L.

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sãopaulo - Por que começou a fazer rap?
Don L - Acho que foi uma necessidade de me expressar de uma forma que eu pudesse contribuir pra mudar a realidade à minha volta, e a minha própria em primeiro lugar. Não no sentido de fazer uma grana e mudar minha vida com o rap, a princípio, mas de precisar daqueles sons pra mim, pra minha busca. Eu ouvia rappers falando de mudanças, das suas próprias maneiras de transformar o negativo em positivo, de fazer essa alquimia.

O que você pensava naquela época?
Eu estava em Fortaleza (CE), nos anos 2000, andando num Opala dos anos 1980 e ouvindo rap, que era uma música muito mais marginalizada. Curtindo na rua ou em algum bar de quebrada com uma sinuca, com o som do porta-malas do carro fazendo a festa, criando uma realidade paralela, sem tirar o pé da vida real. Sempre acreditei que a vida pudesse ser mais interessante.

A cidade era pouco promissora, um bairro pobre, mas tinha uns amigos na disposição, tinha uma vista pro mar do alto do morro e uma sede muito grande. Eu via os vídeos de rap gringos e pensava: olha a onda que esses caras estão tirando, a transformação que eles fizeram na realidade deles, no estilo de vida deles. Isso me inspirava a tunar a realidade à minha própria maneira.

Daí para o grupo Costa a Costa, como se deu?
A gente juntou uns amigos que faziam rap e formou o Costa a Costa [em 2005]. Lançamos uma mixtape ["Dinheiro, Sexo, Drogas e Violência do Costa a Costa" (2007)] sem medo de ser a gente mesmo, de sermos ambiciosos, e impulsionamos nossa geração a fazer o mesmo. O rap brasileiro estava num momento que eu não sentia mais o que senti no começo, não me passava mais aquela sede. Estava se perdendo num sentimento de desistência que começou a virar uma apologia à derrota, como se o legal fosse ser fodido e assumir a posição de vítima.

Mesmo que não estivesse sendo dito isso claramente, era assim que eu via o impacto no público. Percebe a diferença em relação ao que eu disse sobre o que me motivou a começar? Então a gente veio dizendo foda-se, não vou perder. Tenho uma vida toda pela frente, um mundo cheio de riquezas –e eu quero a minha parte. E aí com esse sentimento a gente acabou fazendo um lance muito à frente da nossa época em vários aspectos, e contribuiu para a nova cena se formar.

Como você descreve o seu estilo?
Gosto de ouvir definições sobre o meu estilo e trabalho, ver como a coisa toda foi percebida por aquela pessoa. Me ajuda a pensar em várias coisas. Mas não gosto de me definir, porque sempre vai ficar incompleto. Faço música para chapar, pra colocar um filtro na realidade, como uma droga. O filtro não necessariamente é uma fuga. São novos estados de consciência que podem também despertar ambições, desmascarar verdades íntimas, mentiras públicas. Cafetinar a realidade. Fazer você ver com meus olhos e sentir meu coração, se identificar com meus impulsos.

A música sempre foi isso pra mim, você bota ela pra tocar e todo o ambiente muda. As coisas continuam sendo as mesmas, mas a sua visão sobre elas muda. Eu tenho um "flow" [jeito de usar as palavras para levar a música] a cada um quarto de verso, crio na medida que a instrumental me pede. Não tenho um elemento que busco sempre. Na minha mixtape tem sons com batidas super pesadas e outros sem batida. De alguma maneira isso tudo tem uma unidade que faz você saber que a música é minha nos primeiros segundos que você ouvir minha voz, mesmo que ela esteja alterada. Mas isso aí é melhor definido por outras pessoas.

O que acha da cena hip-hop brasileira atual?
Estamos num momento promissor. Tem artistas bons preparando trabalhos para serem lançados, como a Flora Matos e o Ogi, e tem o trampo do Criolo e dos Racionais, por exemplo, que foram lançados recentemente e que são grandes trabalhos. E tem uma molecadinha fazendo um som que vai ser descartável, mas vai cumprir o seu papel. Tem um público novo do rap que vai curtir rap na festa do colégio, como funk, pagode e outros ritmos populares, e isso vai fazer parte da formação deles. Pra gente que faz rap hoje, ouvir rap era uma coisa muito mais marginal, muito underground.

A gente tá num ponto de virada, que pode ser aproveitado para chegar num grande momento. A realidade do rap e da música hoje em dia é muito mais difusa. Tem muita coisa acontecendo. Algumas caminham juntas para depois seguirem direções opostas e talvez se encontrarem de novo. Cada um tá buscando seu próprio caminho, uns influenciando os outros, mas cada um criando suas próprias soluções. Acho que é uma característica geral da nossa época. Não temos mais grandes líderes, grandes sonhos coletivos, grandes revoluções.

O que os Racionais MC's representam pra você?
Os Racionais são uma das coisas mais importantes que aconteceram na cultura brasileira nas últimas décadas. Não acredito que exista um rapper brasileiro que não tenha sido influenciado pelo trampo desses caras. Ouvi muito, fui a vários shows. Eles com certeza influenciaram minha postura em relação ao mundo e meu trabalho. "Fim de Semana no Parque" foi a primeira música deles que eu lembro de ter ouvido e entrado em choque. Aquele lance de se colocar como sujeito da mudança, e não como vítima, de transformar o negativo em positivo, de falar sobre a porra da situação desfavorável toda e ter uma postura afirmativa sobre isso.

O que achou do disco novo deles?
Os Racionais sempre tiveram esse dom de não envelhecer, de se relacionar e tentar entender as novas gerações em vez de ficar na defensiva, com medo de perder espaço. Pelo contrário, eles sempre têm o dom de ser totalmente épicos, de fazer um som que reflete em todos os sentidos o momento atual, de ser a rua hoje. Isso que aconteceu de novo [com "Cores e Valores"]. Vieram com um disco que é a rua em 2014. E além disso, explicando porque tá assim e de onde vem tudo isso.

Ainda há espaço para aquele rap feito até 12 anos atrás?
Existe cada vez mais espaço para qualquer coisa que seja realmente relevante. Estamos no momento de maior liberdade de criação que já existiu, levando em consideração o contexto mundial. Você pode fazer um disco de rap com uma pegada tradicional dos anos 90 e ser muito bom, muito novo. O que a música precisa é de "feeling". A batida, a produção, a letra, a voz, a melodia, tudo tem que estar em sintonia para criar o ambiente propício para aquele sentimento que você quer passar. Se as pessoas se identificarem de alguma forma, você conseguiu.

O que diferencia a cena hip-hop de agora daquela época, anos 1990?
O Brasil é um país muito carente até hoje, de uma desinformação muito grande e de pouco acesso à educação e cultura. Mas nos anos 1990 isso era bem pior. Antes da internet, nos governos FHC, que foram extremamente cruéis com a camada mais pobre da população. Hoje em dia o acesso melhorou um pouco, e isso se reflete no rap. Acho que o bombardeio de informações e influências torna nosso momento atual único e sem precedentes.

O que você sonhava quando começou? E o que você sonha agora?
Meu sonho sempre foi ser bem sucedido com o meu trabalho, e assim ter condições melhores para realizar o que eu quero na vida e na arte, para ter condições melhores pra realizar o que eu vou querer realizar depois de ter realizado o que eu quero realizar agora.

O que te angustiava no começo? E o que te angustia agora?
Me angustia pobreza. Não só financeira –isso é ruim também–, mas pior é a pobreza de espírito, pobreza de ambição, falta de coragem... Pessoas que não dão o sangue pelo que acreditam, que não apostam em nada que não seja muito certo, que não entendem o valor de um grande momento para a eternidade.

Você recentemente se mudou para São Paulo. Isso já influencia na sua música?
Minha vida inteira influencia minha música, imagina a cidade onde eu vivo! Mudei por vários motivos: por ter mais profissionais da minha área pra trabalhar, pela vida cultural da cidade e pela grandeza da cidade –que é mais compatível com a grandeza dos meus planos.

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