'Meu rap reflete problemas que sofri e momentos que sorri', diz Flow MC

O Júlio César Eugênio ainda não era Flow MC quando, na escola em 1997, montou um grupo de pagode. Foi lá que ele descobriu sua habilidade para compor.

"Mas nada muito sério", até que conheceu o Marcello Gugu em 2002, "que já escrevia letras de rap" e começou a soletrar com ritmo e poesia.

Leia abaixo a entrevista com o paulistano do Ipiranga que, na fotogenia, é pura cara de marrento –mas, em pessoa, é paz, amor e timidez.

"Sempre fui muito pensativo, então as ideias que não conseguia expressar no dia a dia acabaram virando letras".

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sãopaulo - O que te levou a começar a fazer rap?
Flow MC - Minha família sempre escutou muita música. Minha mãe é sobrinha do Pé Rachado, fundador da escola de samba Barroca Zona Sul, e meus tios sempre curtiram muito samba, soul, samba rock, R&B... Então eu e meus primos sempre escutamos muita "black music" dentro de casa. A primeira vez que escutei rap creio que foi na musica "Jam", do Michael Jackson, que tem participação do rapper Heavy D. Mas fui ter ciência do que realmente era rap com a morte dos rappers Notorious B.I.G. [1972 - 1997] e Tupac [1971 - 1996]. Eu ainda era criança, mas meus primos já frequentavam o Projeto Radial, Clube da Cidade –entre outros bailes. Assistiam o "Yo! MTV Raps", gravavam fitas K-7... E eu, como o caçula da turma, era diretamente influenciado.

Em 1997 eu e alguns amigos da escola criamos um grupo de pagode. Foi quando descobri que tinha habilidade para compor. Mas nada muito sério até conhecer o Marcello Gugu, em 2002, que já escrevia letras de rap –o que eu não fazia, mas gostava muito. Ai foi quando comecei a compor meus raps. Sempre fui uma pessoa muito pensativa, mas era muito tímido, então as idéias que não conseguia expressar no dia a dia acabaram por si só virando letras.

Saberia descrever seu estilo, apontar coisas que o diferenciam de outros?
Difícil falar de si né? [risos] Meu rap é reflexo dessa bagagem de black music que recebi da minha família. É a visão de jovem negro perante a sociedade adquirida pelos raps dos anos 1990, dos livros que li, dos amores que vivi, dos problemas que sofri, dos momentos que sorri, do humor do meu pai, a sapiência da minha mãe, os dialetos do meu bairro e a vontade de inovar de Michael Jackson –uma das vozes que mais escutei na minha vida. Uns dizem que sou "trap", outros que é "gangsta", outros pop.. Creio que meu estilo seja livre [Risos]. Falo sobre tudo.

A cena hip hop atual está bem representada?
Sim. Dizer que não melhorou é mentira. Hoje você liga a TV e vê rappers importantes conversando de igual para igual com outros artistas de gêneros em horários jamais alcançados. Mas ainda falta muito. Infelizmente nossa sociedade está em transformação e o rap faz parte da sociedade. Tem muito preconceito, tanto de dentro para fora como de fora para dentro, e por si só a palavra rap ainda não agrada muitos ouvidos. Fiz um show no Sesc em que uma senhora disse não ter ido antes em um evento desses por puro preconceito, mas que aprendeu muito com a inteligência dos MCs ali presentes. Ela falou que perdeu muito tempo e que deveria ter escutado rap há muito tempo. Creio que quanto mais temas abordados, mais MCs de diferentes cores, Estados e cidades tivermos, melhor. Estamos sim bem representados. Tem muita gente trabalhando em prol ao desenvolvimento da nossa arte e para a quebra de certos tabus. Fazemos o que temos que fazer, e cada um tem sua responsabilidade. Para que o avião chegue ao destino muita gente tem que contribuir. O piloto precisa de um copiloto.

Qual a importância do Racionais MC's para você?
Racionais tem a mesma importância para o jovem negro brasileiro que o Malcon X tem para o negro americano. Em 1998 eu tinha 13 anos, estava exposto a todas as armadilhas que um afrodescendente está sujeito na cidade grande após o termino da escravidão. Para te falar a verdade, eles [o Racionais] salvaram muitas vidas. Quem ouviu e compreendeu sabe muito bem. A música "Capitulo 4 Versículo 3" mudou minha vida. Foi ali que eu comecei a entender o porquê de certas coisas no meu cotidiano. Foi uma influência monstra. O Brasil mudou, mas o negro moderno tem sequelas modernas herdadas daquelas que eles descreveram no passado. Louco, né?

Lembra qual foi a primeira vez que você ouviu uma música dos Racionais?
Foi a música "Fim de Semana no Parque" no ano de seu lançamento [1993]. Mas entendimento mesmo foi aos 13 anos quando ouvi o disco "Sobrevivendo no Inferno" [1997]. Depois li a autobiografia e vi o filme do Malcon X e me tornei um preto tipo A, mas custou caro saber de tanta coisa no meio dos adolescentes alienados da minha idade. Me tornei questionador.

O que achou do disco novo deles, "Cores e Valores"?
Disco pesado. Retrato do negro moderno. Não tem como retratar o Brasil de 1998 em 2014. O país brasil mudou. Eles são negros modernos que não pararam no tempo, estão sempre rodeados de jovens. Viu os flows do Brown no disco novo? Eles acompanharam a metamorfose das idéias, as batidas. Um influencia o outro, né?

Ainda há espaço para uma imagem de rap como a de antigamente?
As letras condizem com o que a sociedade pensa em uma determinada época. Estamos praticamente em 2015. Muitas coisas ali ditas já sofreram metamorfose. Daqui a dez anos vai lá saber como estará o Brasil. Olharemos para trás e notaremos que algumas idéias de cores e valores ficaram em 2014. É um ciclo que se renova.

O que diferencia a cena hip hop de agora da cena de hip hop daquela época da década do fim da década de 1980 e da de 1990?
Outros tempos, outro Brasil, vários ensinamentos. Foi necessário o rap ser mais agressivo nos anos 90. Caso contrário eu não saberia de muita coisa, estaria preso ou morto. Mas não estou pois aqueles raps me salvaram –eu e muitos outros. Fico feliz em ver um negro escrevendo uma letra feliz hoje, e outros mil temas que não poderiam ser escritos porque ele não teria nem o direito dessa felicidade, saca?

De onde tem saído os novos MCs?
De inúmeras partes, principalmente das batalhas [onde MCs se encontram para duelar com rimas improvisadas]. Sou organizador da primeira de São Paulo [organizada semanalmente aos sábados na saída do metrô Santa Cruz, zona sul]. Lá se destacaram eu, Emicida, Marcello Gugu, Bitrinho, Rashid, Drik Barbosa, Projota, Helibrown, Gah, Guilherme 13... Temos a Batalha do Beco com o grupo Costa gold, Kauan MC, Rato etc. Hoje tem batalha de MC todos os dias em diferentes partes.

Quais os planos para o futuro?
Lancei no segundo semestre um DVD ao vivo do meu último CD chamado "Sensaflownal", com participações de Kl Jay, Emicida, Shawlin, Rashid, Drik Barbosa, Xis, DJ Colorado e Afrika Kidz Crew. Está disponível no Youtube e para venda nos shows. Estamos trabalhando em três clipes de encerramento da "Sensaflownal" e iniciaremos a gravação do novo CD em janeiro.

Qual a cara do rap brasileiro atual?
Ele é livre, e cada vez mais forte. Diversos temas, gosto para todos ouvidos. O rap paulista nunca irá perder aquela característica de contestar, porém ele é livre

O que de mais importante aconteceu na cena do rap nos últimos tempos?
O aumento de rappers femininas é notável, porém necessitamos de mais e mais. A internet nos ajudou muito com a distribuição das músicas, dando um alcance de grande proporção. Conexões entre os Estados cresceram também, assim como contatos internacionais. Estamos aprendendo a trabalhar, e o Emicida é a prova viva. Tivemos o surgimento da Batalha do Santa Cruz [2006]. Aprendemos muito durante esses anos.

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