São Paulo, 461

A essência de SP na versão de sete representantes das artes

Que imagem, música ou filme consegue definir 11,9 milhões de pessoas e mais de 1.500 km²? Qual deles tem a capacidade de retratar realidades tão distintas e distantes quanto a avenida Paulista e Marsilac, o bairro com ruas de terra no extremo sul?

A construção da imagem de uma megalópole é discussão para estudiosos do urbanismo, das artes e da sociologia. Para muitos deles, uma cidade dessas dimensões dificulta a existência de um sentimento de conjunto e de pertencimento, já que o morador não consegue mapeá-la.

O sociólogo alemão Georg Simmel escreveu que a natureza característica da metrópole é ver sua vida interior transbordar para uma área mais vasta. Olhar tudo, então, se torna inalcançável. Faltam formas para observar São Paulo de cima, e não há pico do Jaraguá que resolva.

Na ausência de uma obra consagrada que resuma a atmosfera da cidade de 461 anos, a sãopaulo convidou paulistanos de diferentes áreas culturais —cinema, música, arquitetura, teatro, literatura, fotografia e artes visuais— para sugerir o que, na opinião deles, melhor define sua essência.

As respostas reunidas a seguir convergem em palavras comuns ao cotidiano da selva de pedra: caos, paradoxo, contradição.

Talvez a melhor definição de São Paulo seja o encantamento provocado por sua indefinição.

ARQUITETURA E URBANISMO
Guilherme Wisnik, 42, professor da Faap

Escolha: coexistência do modernismo e do medieval nos anos 1950

A essência de São Paulo não é sintética, é uma oposição, um paradoxo. É interessante pensar que a Catedral da Sé, um edifício neogótico, foi inaugurada no 4º Centenário da cidade, em 1954, com os edifícios modernos de Niemeyer no parque Ibirapuera. Como pode uma cidade produzir símbolos tão discrepantes ao mesmo tempo? Como pode uma cidade desprezar tanto o seu passado a ponto de decidir demolir a sua igreja matriz para construir um revival medieval?

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TEATRO
Zé Celso, 77, diretor teatral

Escolha: Peça "o Rei da Vela" (1937), de Oswald de Andrade
Há 77 anos, minha idade, Oswald imortalizou a Capital do Capital Especulador Imobiliário no "Rei da Vela", mas SamPã já é a da Pintura das Ciclovias y a Odisseia Oficina X Grupo Silvio Santos na Troca de Terrenos propiciada pelo novo Plano Diretor, quando a Pista Cênica da Rua Lina Bardi expandirá em Corredores Culturais, driblando Torres até a Chácara do Jockey Club. Presentão pro dia 25

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MÚSICA
Tiê, 34, cantora

Escolha: a canção "Trovoa" (2007), de Mauricio Pereira

Sou uma paulistana apaixonada pela cidade, desde que me lembro de responder à pergunta: você gosta mesmo de São Paulo? SIM, eu amo isso aqui! Então escolho "Trovoa", do Mauricio Pereira. Música lindíssima que retrata essa loucura, que tem nascer do sol visto da Vila Ipojuca, chicletes de troco, a entrega, a meiguice, o tapa, a fuligem, a padoca, o desafio, a defesa, o metrô, o vapor e o amor (denso)!

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FOTOGRAFIA
Cristiano Mascaro, 70, fotógrafo

Escolha: fotografia própria do edifício São Vito (2008)

Esta é a minha imagem de São Paulo. Cinza e feérica em um cenário um tanto degradado. Ao fundo lá está o São Vito, um belo edifício modernista que, a partir da década de 1950, tornou-se um dos ícones da cidade. Não havia quem não o conhecesse de vista ou pelo menos de ouvir falar. Detestado por uns, adorado por outros (eu o adorava), veio abaixo para confirmar a vocação autodestruidora da cidade.Nota: até hoje, nada foi feito no lugar.

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CINEMA
Ugo Giorgetti, 72, cineasta

Escolha: seu filme "Uma noite em Sampa", com lançamento previsto para março

Um grupo de pessoas acaba de sair do teatro e se dirige ao ônibus que as deve levar de volta ao seu protegido condomínio fora de São Paulo. Mas encontram o ônibus hermeticamente fechado e o motorista desaparecido. Passam então a deliberar, falar, fazer planos, mas não se movem. Não tomam nenhuma atitude. Isso é um pouco a cidade hoje. Esperamos que chova ou que não falte luz. Falamos e esperamos.

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ARTES PLÁSTICAS
Tatiana Blass, 35, artista

Escolha: sua obra "Vaga" (2012)

A essência de São Paulo é a pluralidade, é ser um lugar com um grande fluxo de acontecimentos. No entanto, há uma grande dificuldade de deslocamento. Na obra "Vaga", é como se o chão tivesse engolido o carro ou como se o pavimento tivesse sido feito já com sua presença. A intervenção sugere uma paralisação do tempo, o tempo que perdemos para nos deslocar. A obra ficou um mês ali [galeria Millan, em Pinheiros] e o carro foi amassado e quebrado [por traseuntes, à noite], demonstrando a agressividade que temos com tudo o que está no espaço público.

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LITERATURA
Ivana Arruda Leite, 63, escritora

Escolha: Breve inventário geográfico sentimental da minha vida em São Paulo*

Mar/58 A família chega de Araçatuba pra morar na Francisco Leitão, 180. Pinheiros passou a ser a minha pátria. Eu estudava no colégio das freiras na Cônego Eugênio Leite.
Dez/63 Mudamos pra rua Lisboa, 159, único prédio da rua por muito tempo. Eu estudava no Meira, na Pe. João Manuel.
Dez/75 Me casei e fui morar num apartamento na Augusta, em cima da Galeria Ouro Fino. Fazia compras no Santa Luzia sem saber que ele era tão chique. O marido reclamava dos gastos.
Jul/76 Mudamos pra Benedito Calixto, único prédio da praça, em frente à igreja do Calvário (onde me casei). Embaixo tinha um Pão de Açúcar. O marido gostou da economia. Não havia nem sinal da feirinha.
Jun/79 Casal com filha de seis meses muda-se para amplo apartamento na Barata Ribeiro, em frente a uma sauna, e respira lenha queimada o dia inteiro. Talvez por isso o casamento tenha terminado.
Nov/83 Voltei pra Benedito Calixto. A feirinha ainda não existia, mas estava lá o Lira Paulistana! Ali fizemos o panelaço pelas Diretas. Depois choramos quando tudo deu errado.
Ago/84 Num hippismo tardio, fui morar com amigos na alameda Santos, perto da Rebouças. A noite começava no Munchen, passava pelo Bar Brasil e terminava no Pirandello.
Mai/86 Cansada da esbórnia, mudei pra Vila Madalena, apartamento no BNH. O Bartolo era o único bar do bairro. Pra sobreviver, eu mexia com pedras e lia tarô.
Jan/89 A miséria se avizinhava. Condoídos, meus pais me levaram pra morar com eles, em Caucaia do Alto. Eu vinha pra São Paulo diariamente num Fusca 86, deixava a Bebelno Equipe e ia pra USP terminar o curso de ciências sociais.
Jun/90 Apostando num casamento que durou três meses, mudei pro Labitare, km 13 da Raposo Tavares. Um inferno chegar a São Paulo pela manhã.
Set/90 Finda a brevíssima união, fui morar numa casa no fundo da loja dos meus pais, na Eliseu de Almeida. A casa era imensa e finalmente nós podíamos ter cachorros.
Jul/93 Mudei pra um sobrado geminado numa rua tranquila perto do sacolão da Vila Sônia, onde moro até hoje. Pra minha alegria, minha filha mora em Pinheiros. De vez em quando penso em voltar pra lá.

texto feito especialmente para a sãopaulo

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