Protesto pró-ditadura ignora história do país, diz Comissão da Verdade de SP

Desrespeito à história política do país ou falta de conhecimento sobre o período da ditadura militar. Para os membros da Comissão da Memória e Verdade da Prefeitura de São Paulo, o grupo que foi à avenida Paulista pedir a intervenção militar no domingo (15) sofre de algum desses problemas.

O jornalista Audálio Dantas, a professora Tereza Lajolo e o advogado Fermino Fecchio fazem parte da comissão instaurada em setembro do ano passado, que também conta com o escritor Fernando Morais e o ex-procurador Cesar Cordaro.

Os cinco trabalham para investigar violações dos direitos humanos praticadas na cidade durante a ditadura e apuram crimes cometidos por agentes públicos da prefeitura. Eles pretendem esclarecer o envolvimento de empresários, instituições e dos cemitérios municipais na execução de militantes e ocultação dos corpos.

Testemunhas do período e mergulhados há seis meses em documentos da época, dizem que a história dos anos de chumbo ainda é pouco conhecida dos brasileiros. E culpam o próprio Estado por dificultar o acesso às informações.

Leia abaixo a entrevista com Dantas, Lajolo e Fecchio.

Ariana Iara/Divulgação
O jornalista Audálio Dantas e o advogado Fermino Fecchio na sede da comissão, na Luz
O jornalista Audálio Dantas e o advogado Fermino Fecchio na sede da comissão, na Luz

*

Folha - O grupo que pede a intervenção militar reuniu centenas de pessoas na Paulista. Esse movimento está mais exposto?

Audálio Dantas - Esses grupos apareceram muito timidamente nos protestos de junho de 2013, com uma faixinha aqui e ali. No domingo tiveram mais presença e se manifestaram de forma direta sobre a volta da ditadura. Estão aí como produto da democracia que foi conquistada às custas de muito sacrifício, de muitas vidas. Devemos prestar atenção nisso e o trabalho da comissão da verdade é esclarecer a verdade e mostrar à sociedade quão nocivo o período foi para o país. Os reflexos estão aí até hoje, inclusive na presença dessas pessoas.

Tereza Lajolo - Me deixou estarrecida que as pessoas na manifestação não perceberam o elemento fundamental: estão vivendo em uma democracia. Eles dizem que naquela época era melhor, mas o simples fato de passar um abaixo-assinado era motivo para você ser presa, porque estava se manifestando contra o governo. E no domingo ninguém reprimiu. Eles tiveram essa liberdade, todos podem criticar o governo. Por que alguém quer a volta de uma coisa dessas? Não estamos conseguindo dar uma resposta a um momento complicado do ponto de vista econômico e político. É necessário fazer o povo entender essa realidade, saber quais são suas bandeiras e como se posicionar nesses momentos. A crise existe, assim como em outros períodos do Brasil. Sem resposta do governo, as pessoas dizem "tira esse e coloca outro", mas coloca outro para quê? Você quer a ditadura, mas para quê? E a economia? Outras questões devem ser discutidas.

O que faz as pessoas se manifestarem a favor de uma opção tão extrema como a intervenção militar?

Audálio Dantas - Observa-se uma profunda ignorância de história na maioria das pessoas que participaram da manifestação, não só aqueles que pedem o retorno dos militares. Não há o entendimento do que o país está vivendo e do que a ditadura militar representou de atrasos. São pessoas muito bem postas na vida que dizem coisas reveladoras da profunda ignorância ou da falta de respeito com a história do país. Não entendem que soluções não passam simplesmente pela substituição de um governante.

Fermino Fecchio - A gente tem que relativizar essa manifestação. Estamos falando de um protesto na avenida Paulista. Não vi em outro lugar símbolos fascistas. Fazem passeata numa cidade que sequestrou, torturou e matou. Se eu pegar essa lista aqui [de desaparecidos políticos], cito um exemplo. Virgílio está sepultado num cemitério de São Paulo há 46 anos. Foi sequestrado, torturado, assassinado e sepultado como indigente em um cemitério público da cidade, com a conivência de muitas dessas classes que se manifestaram lá. Aliás, com o dinheiro dessas classes que sustentavam esses mecanismos. Virgílio está há 46 anos sepultado e até hoje o poder público não devolveu os restos mortais para família. Quem contou essa história para os que estavam lá [na manifestação]? Eles também são vítimas do mesmo Estado que institucionalizou o terror como política pública. O Estado não dá informação. Quem são os professores que contam isso para seus alunos?

Ariana Iara/Divulgação
Tereza Lajolo, membro da comissão da prefeitura de São Paulo
Tereza Lajolo, membro da comissão da prefeitura de São Paulo

Como criar uma consciência sobre a ditadura e como a comissão colabora para isso?

Fermino Fecchio - As comissões da verdade são uma responsabilidade social dos poderes públicos, dos equipamentos culturais. Quem fala desse assunto? Ninguém. Da mesma forma que até hoje esse pessoal ignora os fatos, quem torturou e matou não foi nem processado. Como a gente trabalha a impunidade? É necessário alertar sobre isso. O Carlinhos Metralha [que estava no protesto e foi aclamado por manifestantes] não foi depor na Comissão Nacional da Verdade. Ele não apareceu lá, mas aparece na Paulista. Queremos contar a história, para os munícipes, de como a prefeitura de São Paulo funcionou durante o período da repressão. Ela ajudou na repressão? Essa é nossa humilde missão, não é julgar ninguém.

Quais são as dificuldades?

Tereza Lajolo - O que nos acompanha nessa questão de mostrar a ditadura é o fato dos militares terem queimado documentos, de muitos ainda serem impedidos de falar e a documentação que eles têm e não abrem. Quem não deve não teme. Em 1989, os familiares conseguiram a abertura dos documentos do Dops (Departamento de Ordem Política e Social), que estão hoje nos arquivos do Estado, você pode ir lá e consultar. Agora, os arquivos federais, nem a pau. Muitos dos documentos federais foram queimados.

Como veem as selfies com os policiais militares nos protestos?

Audálio Dantas - É a negação de tudo o que se disse nas manifestações em 2013, que a polícia militar era violenta. E os militares acharam muito bom, estavam posando com as mocinhas. As pessoas esquecem que diariamente essa mesma polícia massacra dezenas, centenas nas periferias das grandes cidades. Ninguém está ligando para esse problema. Não que o policial não seja uma pessoa como qualquer outra, mas isso é a confraternização com o símbolo da repressão.

Tereza Lajolo - Historicamente fomos criados numa forma que reverencia o militarismo. A gente sempre aceitou que isso existisse, que precisa se formar no quartel para defender a pátria, não é nem a defesa dos cidadãos. É um troço meio doido. Quando as pessoas acham que essa realidade precisa ser questionada e transformada, se tornam inimigos da pátria. "Saia daqui e vá embora."

Por que esses movimentos pela intervenção militar aparecem com mais força em São Paulo?

Teresa Lajolo - Todo o processo de organização [do regime] aconteceu aqui. A coisa ocorreu de forma planejada com o pessoal de São Paulo, inclusive com empresários da cidade. Além disso, as pessoas que estavam junto ao regime também formaram opinião na família, foram semeando. E um dia a erva daninha aparece. As redes sociais também vão formando opinião. As pessoas formam a cabeça e assumem coisas que nem sabem o que são. Foi como aconteceu na época da ditadura. Eu morava no conjunto residencial da USP até um dia depois do AI-5 (Ato Institucional número cinco), quando fui colocada para fora. Os indivíduos que foram nos prender estavam armados com metralhadoras e, segundo eles, seus superiores disseram que tínhamos armas anti-aéreas. Eles tinham medo da gente, acharam que éramos pessoas perigosíssimas.

O movimento que pede intervenção militar pode ameaçar a democracia de alguma forma?

Fermino Fecchio - Não vejo condições de um golpe militar e nem acho que seja o objetivo desses grupos. Se vier o golpe, vem por outros caminhos. Nem no Paraguai estão usando as Forças Armadas. Você usa o Poder Judiciário, tem outros meios. Mas não por Forças Armadas, não vejo que aí está o perigo. Tem tido muita discussão interna nas Forças Armadas. Fui professor de direitos humanos para polícias estaduais. Quando você imaginava discutir direitos humanos com policiais? Quando que eles passam a entender que direitos humanos é o direito deles, a coisa começa a mudar. É uma mudança cultural que vai indo e eles veem que estão morrendo.

Audálio Dantas - Também considero remota a possibilidade de golpe militar, porque eles nem saberiam o que fazer no poder. Mas acho que os movimentos conservadores representam um perigo de retrocesso nos avanços que o país teve até agora. E contribuem para setores tradicionalmente aproveitadores, especialmente no Congresso Nacional, que atuam para tirar vantagem. As pessoas que têm as rédeas do Congresso se beneficiam da situação e isso se reflete no processo democrático. O país fica numa situação de paralisia.

Publicidade
Publicidade