'O racismo é a minha luta para a vida', diz Emicida; leia entrevista na íntegra

Com novo disco, lançado no início de agosto, o rapper Emicida reacendeu o debate sobre o racismo, que considera ser sua "luta para a vida" e "o maior problema do Brasil hoje em dia".

"Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa" inclui faixas que abordam questões sociais levadas ao extremo, como "Boa Esperança", cujo clipe apresenta um cenário de guerra civil, quando empregados de uma mansão rebelam-se após serem humilhados no trabalho.

Ainda que transmitam mensagens vorazes em uma tentativa de confronto à injustiça social, as canções do álbum possuem melodia lúdica e alto astral, como em "Passarinhos", gravada em parceria com a cantora Vanessa da Mata.

Algumas faixas foram gravadas durante viagem a Cabo Verde e Angola e contam com arranjos de músicos locais; outras, com parceria de artistas como Caetano Veloso, que participa de "Baiana".

Emicida faz show no Sesc Pinheiros na próxima sexta-feira (21), no sábado (22) e no domingo (23), e comenta o novo disco em entrevista à sãopaulo. Confira na íntegra.

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Por que decidiu conhecer Cabo Verde e Angola e qual sua lembrança mais marcante dessa viagem?

Essa já era uma vontade antiga. Eu sempre li sobre a África, sempre me interessei em entendê-la sob vários aspectos, a música, a história, a crueldade das pessoas sendo escravizadas no Brasil, é a minha ancestralidade. Com o tempo, o rumo que a minha carreira foi tomando, isso foi ficando mais latente e ao mesmo tempo se tornando uma possibilidade mais próxima de ser real do que apenas um sonho, sabe. A oportunidade surgiu com o patrocínio da Natura, então lá fomos nós. Estes países foram escolhidos propositalmente por serem de língua portuguesa e este ano comemoram 40 anos de independência. O título do disco é a melhor síntese, creio eu, das minhas lembranças mais marcantes. Foi encantador ver o modo simples de vida daquele povo em meio a todas as limitações que a vida impõe. Crianças sorridentes, quadris dançando sem que aquilo seja uma ofensa, seja criminalizado. Eu me lembro de ir à casa de uma senhora em Cabo Verde e ela me pedir desculpas porque as flores não haviam surgido ainda naquele período e a paisagem não estava tão bonita. Essa é uma lembrança marcante, que vem à tona quando essa pergunta me é feita.

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Li que o nome da música "Boa Esperança" veio do livro "A Rainha Ginga", de José Eduardo Agualusa. Poderia me contar como foi isso?

É o nome de um navio negreiro que veio para o Brasil. Os navios negreiros que chegavam aqui tinham todos nomes bonitos, de coisas boas. Isso de uma coisa que era sinônimo de horror ter um nome bonito, até poético, ficou na minha cabeça. Muito da literatura africana me inspirou. Me vem à mente também o "As Aventuras de Ngunga", do Pepetela. A história é um soco no estômago, de um menino angolano, um soldado ainda jovem. Como eu vinha pesquisando sobre isso há anos, sem nem imaginar que faria essa viagem, e que ela se desdobraria em um disco, acho que muita coisa me inspirou até de forma indireta. A literatura africana é riquíssima, mas nem tudo chega aqui. Só que eu fui descobrindo muita coisa durante as minhas turnês pela Europa, em Portugal, por exemplo, é fácil achar muita coisa. Qualquer conexão em Lisboa já é suficiente pra eu perder horas em uma livraria (risos).

O disco aborda a questão do racismo de uma forma bem direta e você chegou a declarar que essa é a questão primordial para você. Acredita que o seu trabalho tem poder de mudança no cenário que vivemos?

Primordial para mim e o maior problema do Brasil hoje em dia. É o pano de fundo, nunca admitido, das razões para a desigualdade, para a discriminação. Seria maravilhoso que meu trabalho por si só tivesse o poder de mudar esse cenário em que vivemos, mas não acho que eu sozinho possa reverter algo que está impregnado no cotidiano do país desde a chegada dos escravos. O que eu não posso deixar de fazer é de apontar para isso, é de lembrar que, sim, somos um país muito racista.

Ao mesmo tempo é um disco com uma sonoridade lúdica e canções alegres. Por que essa combinação ao tratar do assunto?

Porque a música africana é isso, eu trouxe instrumentistas africanos, eu trouxe ritmos africanos, e não acho que tudo precise soar como "Boa Esperança" para que eu consiga transmitir a mensagem que desejo, digo no sentido da letra e do instrumental. Não é preciso muita reflexão para sacar que "Passarinhos" traz ali uma questão social. Eu não faço essa reflexão do "por que não fazer essa combinação" porque não sei onde está escrito que é proibido, que não se pode fazer. Eu bato na tecla da liberdade da minha arte, sabe. Não estou tratando com desdém dessa questão tão lamentável quando dou a ela uma roupagem como a de "Passarinhos". Só estou chamando a atenção para ela de uma forma diferente da que fiz em "Boa Esperança".

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Você pretende continuar abordando este tema nos próximos trabalhos?

O racismo é a minha luta para a vida, acredito eu, para que minha filha não precise crescer em um ambiente como o que eu cresci e infelizmente eu nem acho que isso seja possível, talvez para os filhos dela apenas. Então acredito que sim, eu estarei às voltas com isso por toda a minha vida, não é uma escolha. Possivelmente nas minhas músicas também.

Você acha que o rap virou moda ou já o enxerga como um gênero consolidado na música popular brasileira? Como fortalecê-lo ainda mais?

O que vai fortalecê-lo é a consistência das obras. Desde que eu era adolescente o rap esteve na minha vida, Racionais sempre foi aula de história. São 25 anos de história, formando gerações, inspirando possivelmente todos os MCs que hoje vemos aí fazendo sucesso. Não é uma história mais do que consolidada na música brasileira? Para mim sempre foi. Talvez tenha virado moda para determinada parcela que sempre teve preconceito com o gênero, que não conhecia. Uma outra parte do público gosta de alguns grupos, mas não conhece a história do gênero, o que acho natural também, embora fosse melhor se essas pessoas tivessem o desejo de se aprofundar.

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