Baile na zona norte mistura black music dos anos 70 e 'passinho'

As primeiras notas de "Parabéns", de Tim Maia, começam a tocar depois da meia-noite. No salão, todos levantam as mãos e cantam juntos, numa mistura de coral gospel e harmonia de escola de samba. O refrão é irresistível.

"Que legal! Parabéns por este ano, outra vez só dá você", repete Tim. Nas mesas de plástico que bordeiam a pista de dança, bolos são cortados e bebe-se espumante.

Naquela noite, 15 pessoas comemoravam as novas idades no Baile dos Aniversariantes, uma das tradicionais e (pouco conhecidas) festas de música black da cidade. Ela ocorre na última sexta-feira do mês, em um salão na Casa Verde (zona norte). Paulistanos de todas as cores e estilos são bem-vindos para ouvir soul, samba e pop. E, claro, celebrar o aniversário.

Marina Rago/Folhapress
João dos Santos, 55, trabalha com vendas e imita Michael Jackson no tradicional Baile dos Aniversariantes
João dos Santos, 55, imita Michael Jackson no tradicional Baile dos Aniversariantes

Ali, tocam sucessos de 1960, 1970 e 1980, principalmente de cantores negros, como Jorge Ben Jor e Wilson Simonal. Fundador da festa, Ademir Gonçalves, 64, disse que o evento nasceu de uma conversa entre amigos.

"Estávamos tomando cerveja e decidimos reunir os aniversariantes do mês. A ideia foi crescendo." Em mais de uma década, o baile chegou a reunir 1.200 pessoas em uma edição. Hoje, a média é de quinhentos participantes. Quem está ficando mais velho não paga entrada e ganha um espumante.

Depois de tomar umas tacinhas, a aniversariante Maria Samuel, 60, completados ali, falou por que escolheu o lugar para comemorar o aniversário.

"É a primeira vez e amei. As músicas são maravilhosas, lembram meu passado. Me senti na fila dos bailes de outros tempos. Foi uma surpresa!"

Ao redor de Maria, seis amigas celebravam suas respostas: "vai gata, manda bala!". Ela respondia: "gente, estou curtindo muito!"

A festa serve para relembrar a São Paulo dos anos 1970, quando bailes blacks reuniam centenas de pessoas no centro da cidade, num mundo de "blackpowers", calças bocas de sino e saltos plataforma.

"A comunidade negra se concentrava em frente ao Mappin, na estação São Bento, na rua Direita. A referência vinha dos EUA, com James Brown, Stevie Wonder", explicou Gonçalves.

É pela música que o vendedor João dos Santos, 55, frequenta o baile há dez anos. Ali, se apresenta como Michael, o Jackson. "Danço como um verdadeiro Michael Jackson", dizia durante "moonwalks" com seus sapatos brancos, de bicos pretos. Jogava o paletó prata para trás, quebrava a cintura e mostrava os dedos, que tinham as pontas enfaixadas com esparadrapo.

"É que o Michael usava. Ele é meu ídolo. Minha favorita é Billy Jean." Quando a música tocava, corria para a pista: "aqui tem o melhor balanço."

Pela perfil nostálgico do "setlist", o público é de uma faixa etária mais velha, acima dos 40. Mas isso vem mudando, disse Gonçalves. Jovens, admiradores do "black music" ou interessados em conhecer outro tipo de balada, passaram a frequentar o lugar.

"O clima é muito bom. Parece que todo mundo é parente", disse a estudante Odhara Mariano, 18, que comemorava o aniversário dos tios no salão da zona norte.

Suas referências de samba-rock e "soul" vieram da família negra. "Essa identificação se reconhece, não se vê." Ela se despediu para juntar-se a "turma do passinho", que seguia os comandos de um homem de boina. Seus "dreads" balançavam enquanto rodopiava com o primo Alon, 20.

MAIS BEIJO, SEM PRECONCEITO

Com uma lata de cerveja na mão, a enfermeira Vanice Martz, 40, observava o vaivém dos bailarinos. Ela dizia se sentir em casa: "me identifico 100%".

"É minha cor, minha raiz, meu estilo." Usava uma faixa verde água no cabelo, que combinava com o alaranjado do vestido e das sandálias.

"É melhor se for essa festa, porque em outras, com outro público, tem um certo racismo. Aqui me sinto melhor, beijo mais, no meu espaço afro, com músicas que conheço desde criança. "

Ela começava a cantarolar Lauryn Hill e mexia a cintura de um lado para o outro. "No black dançante, o corpo fala. Você não vai encontrar isso numa baladinha só de branco."

Resistente no início, o organizador da festa acabou concordando com Vanice. Ele disse que a noite paulistana ainda é segregada.

"É complicado falar, mas [a segregação] sempre existiu, veio dos nossos antepassados e vamos morrer assim. Para o negro entrar na faculdade é difícil, para ser médico é difícil. Estamos tentando, meus netos talvez vejam mudanças. Hoje, por exemplo, aqui dentro está mesclado. A gente tenta..."

A mescla era visível. Em danças coladas, rostos, mãos e braços, brancos e negros, entrelaçavam-se.

Marina Rago/Folhapress
Odhara Mariano, 18, e Alon Coutinho, 20 dançam no Baile dos Aniversariantes
Odhara Mariano, 18, e Alon Coutinho, 20 dançam no Baile dos Aniversariantes

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ENTRE NESSA FESTA

ONDE: Salão de festas do Grêmio Recreativo Cruz da Esperança, na rua Marambaia, 802, na Casa Verde

QUANDO: Todas as últimas sextas-feiras do mês QUANTO: R$ 15 (aniversariantes não pagam e ganham um espumante)

O QUE LEVAR: Bolos, salgadinhos, docinhos e outras comidinhas de festa

COMO SE VESTIR: Roupas para dançar. A maioria das mulheres vai de vestido; os homens usam polo/camisa e calça; jeans e regata estão vetados

QUEM VAI: A faixa etária do público é mais velha, mas nada que deixe a festa menos animada; os últimos do baile saem às cinco da manhã

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