Imigrantes trazem novidades gastronômicas e culturais a São Paulo; veja guia

O aroma de banana frita ("fritay") e arroz national (com feijão e pimenta) se espalhava pelo galpão da Vila Itororó, no Bixiga. Era o Festival da Cultura do Haiti, organizado pela Usih (União Social dos Imigrantes Haitianos) no final de agosto.

Os brasileiros faziam fila para experimentar os sabores do país caribenho, enquanto, perto do palco, o som do rabòday -estilo que é estigmatizado no Haiti como o funk no Brasil, "mas quando toca ninguém fica parado"- agitava os haitianos entre uma apresentação musical e outra. O som do ritmo caribenho compas da Satellite Musique fechou a noite.

Entre 2010 e 2015, o número de concessões de refúgio no Brasil cresceu 127%, e as solicitações multiplicaram-se por 30, segundo dados da Polícia Federal. São migrantes de países que passaram por crises geradas por desastres naturais, caso do Haiti, ou guerras, como a Síria.

Agora, parte dessa população que se estabeleceu em São Paulo está ajudando a renovar a já multicultural cena paulistana, trazendo novidades artísticas e gastronômicas para a metrópole.

"Eventos culturais são importantes para a integração dos migrantes. Não queremos viver no gueto dos refugiados", afirma o congolês Pitchou Luambo, 35. Ele inaugurou uma tenda de comida no foodpark Quintal de Casa, no Itaim Bibi, no início de agosto.

Além de listar pratos como o ngombe (nhoque de banana da terra ao molho de shimeji), o cardápio do restaurante conta um pouco da história da República Democrática do Congo, no centro do continente africano.

"Apresento minha comida e minha história. Ninguém aqui sabe o que é o Congo, e a discriminação vem desse desconhecimento", diz Luambo sobre o país, antes conhecido como Zaire.

Desde 2014, ele compõe o Grupo de Refugiados e Imigrantes Sem Teto (Grist). Por meio dele e junto a outros coletivos, promove eventos culturais para dar visibilidade e integrar refugiados, como o Festival do Dia do Refugiado, que ocorreu em junho.

"A ideia é compartilhar nossa cultura, não só se vitimizar", afirma.

Outro polo da integração entre os brasileiros e imigrantes em São Paulo é o Al Janiah, no centro. O bar, aberto por refugiados e militantes da causa palestina, virou palco de discussão política -e não apenas sobre a situação do Oriente Médio.

No dia em que a casa sediou um debate sobre a situação política de Angola, numa sexta-feira à noite, a calçada estava apinhada de gente, e teve até quem se sentasse no chão do pequeno imóvel.

A conversa era regada a shawarmas e Palestina Libre, o drink da casa, que mistura arak (destilado árabe), cachaça, limão, pimenta vermelha e zaatar verde. O canudo preto completa a paleta de cores da bandeira palestina.

"Nosso objetivo aqui é mostrar que existem questões políticas para o refúgio, sem vitimização dos refugiados. E que cada país tem sua realidade específica", explica Hasan Zarif, um dos sócios do Al Janiah, ecoando parte do discurso de Luambo.

Os empreendimentos dos novos imigrantes são viabilizados de formas diversas, mas sempre com muita força de vontade.

Quem trabalha com comida geralmente começa vendendo quitutes por encomenda e em eventos até juntar dinheiro para o próprio negócio, a exemplo do imigrante congolês.

Já a União Social dos Imigrantes Haitianos (Usih) tenta reformar sua sede, um sobrado bastante velho no Glicério, por meio de uma vaquinha virtual.

A ideia é que, além de organizar shows e debates, a sede sirva como novo ponto de referência para a comunidade haitiana na cidade, com orientação jurídica para os recém-chegados, aulas de português e de preparação para o Enem.

O maior "case de sucesso" imigrante em termos financeiros foi o restaurante Talal Culinária Síria, do sírio Talal al-Tinawi, que abriu as portas em abril após uma campanha bem-sucedida de financiamento coletivo -sua meta inicial era R$ 60 mil, e ele arrecadou R$ 14 mil adicionais.

"Dizem que o brasileiro não gosta de ajudar, mas não foi o que vivi. Mais de 800 pessoas contribuíram, a maioria desconhecida", diz Talal.

Feiras e bazares são oportunidades para outros, como Renee Ross-Londja, 44, da Guiana Francesa. Quando não ocorrem, ela leva seu artesanato com tecidos africanos -comprados de imigrantes que montam barracas ao lado da estação República do metrô- à avenida Paulista, aos domingos.

"Não é fácil. Meu marido é congolês e tem diploma, mas, pela dificuldade em revalidar aqui, tivemos que empreender. Ainda assim aqui é bom, posso simplesmente ir à rua e vender o que faço", afirma.

A música é outro ponto de contato entre as culturas imigrantes em São Paulo. Foi por meio dela que o trio de rap haitiano Surprise69 fez parcerias com artistas brasileiros para a gravação de seu primeiro álbum "Ayisyen Kila (Os Haitianos Estão Aqui)", disponibilizado no Spotify em agosto.

As letras do grupo tratam de temas como o racismo e a desigualdade social, em letras que misturam o creóle, francês, inglês, espanhol e português.

Os Escolhidos, diferentemente do Suprise69, juntaram-se já em São Paulo. Os oito músicos, da Angola e República Democrática do Congo, frequentavam a mesma igreja na zona leste da cidade, a KCC. Eles planejam gravar um single com suas composições de rumba congolesa ainda neste ano.

Para quem se interessou em conhecer estes e outros negócios criados por imigrantes na cidade, a sãopaulo criou um guia, que pode ser conferido a seguir.

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ÁFRICA

Congo
Congolinária
Da cozinha de Luambo Pitchou saem quitutes como o sambusa, um salgado que pode ser recheado com berinjela, cogumelos, abobrinha ou tomate, e o fufu, espécie de polenta. De sobremesa, há o omomba, um doce de biomassa de banana da terra e pasta de amendoim. Notou a ausência de carne? Todos os pratos do restaurante são veganos, como é comum na culinária de alguns países africanos. Para arrematar, peça um Tangawasi, que pode vir como suco ou como drinque e, segundo Luambo, tem propriedades afrodisíacas.

Food park O Quintal de Casa. Rua Dr. Renato Paes de Barros, 484, Itaim Bibi. facebook.com/congolinaria.

Congo
Renabes Artes
A imigrante Renee Ross-Londja nasceu e cresceu na Guiana Francesa, mas, como descendente de congoleses e casada com um, sempre teve uma identificação muito forte com essa cultura. O principal produto de seu artesanato é a abayomi, bonecas negras cujas roupinhas são feitas com retalhos de tecidos africanos —em SP, vendidos próximo à estação República. Quando não está em algum evento de artesanato, Renee vende seus produtos —falando pouco português, mas com um largo sorriso— na av. Paulista, ao lado da estação Trianon-Masp, aos domingos.

facebook.com/renabega

Congo
Os Escolhidos
A banda tem oito músicos e toca ritmos africanos como aguaya e a rumba congolesa. Os integrantes se conheceram na igreja KCC, em Arthur Alvim, na zona leste, o que se reflete nas letras de temas religiosos. As canções são escritas em inglês, francês e dialetos africanos. A banda planeja lançar um álbum com suas composições ainda neste ano.

Congo
Lfcab
No quintal de sua casa, na Vila Matilde, o refugiado Omana Petench dá aulas de francês, inglês e das línguas africanas suaíli, lingala e fon. Também ensina sobre a culinária, cultura e geopolítica africana. Ex-professor universitário e ativista de direitos humanos em seu país, passou a ser perseguido, fugiu para o Brasil e ficou três anos e meio longe da mulher e filhos, que só chegaram a São Paulo neste ano. Agora, tenta viabilizar um centro cultural para crianças refugiadas por meio de financiamento coletivo e eventos. No dia 12, promove um almoço típico congolês com palestra, cujas verbas serão revertidas para o projeto.

Rua Gregório Souza, 128, Vila Dalila. site: lfcab.org.

Tarde gastronômica e palestra "África, suas riquezas e problemas". Sáb. (12): 11h30 às 15h. R. General Jardim, 660, Vila Buarque. Preço: R$ 100. tel. 95893-3278

Marrocos
Basma
A marroquina Basma El Halabi prepara quitutes do Marrocos, seu país natal, e também misturas com a culinária síria —aprendida com o marido, que conheceu no Brasil. Cuscuz marroquino, tajine e tabule são algumas das opções do cardápio.

Food park O Quintal de Casa, r. Dr. Renato Paes de Barros, 484, Itaim Bibi. facebook.com/basmacozinhaoriente

Galeria Presidente
Não é à primeira vista que se percebe que o prédio atrás da Galeria do Rock virou um ponto de encontro de imigrantes de diversos países africanos. O térreo, primeiro andar e subsolo seguem com comércios brasileiros, especialmente ligados à cultura black e ao reggae, além da sede de torcida do São Paulo.

A partir do segundo andar, porém, a impressão é de se ter mudado de país. As placas são escritas em inglês, as conversas acontecem em idiomas africanos e as vitrines têm produtos como carne de cabra, farinha para fufu e clareadores de pele —cosmético difundido em países africanos. Há restaurantes nas pontas dos corredores, onde os imigrantes comem com as mãos, como é o costume.

Rua 24 de Maio, 116, República, tel. 3337-4168

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ORIENTE MÉDIO

Síria
Talal Culinária Síria
O engenheiro Talal al-Tinawi e sua família chegaram a São Paulo em 2013, fugindo dos conflitos políticos e armados na Síria. Três anos depois, abriram o próprio restaurante a partir de uma campanha de financiamento coletivo. Mais de 800 pessoas contribuíram para a meta de R$ 60 mil, que acabou sendo batida em R$ 14 mil. "E só dez cobraram as recompensas!", afirma Talal. Hoje, a casa emprega cinco funcionários de diferentes nacionalidades (Síria, Brasil, Congo, Togo e Angola). De segunda a sábado, o esquema é self-service a quilo, das 12h às 16h. No domingo, há cordeiro, churrasco sírio e o buffet tem valor fixo (de R$ 32 a R$ 42).

R. das Margaridas, 59, Jardim das Acácias, tel. 3360-2595. talalculinariasiria.com

Síria
Ogarett
Financiada pelo sírio Tarek Masarami, comerciante estabelecido no Brás há algumas décadas, a lanchonete emprega refugiados que ele conheceu na Mesquita do Pari. Serve shawarmas e esfirras.

R. Dr. Ornelas, 150, Canindé, tel. 94399-7734.

Síria
Damascus Doce Árabe
Com uma modesta porta na Cônego Eugênio Leite, um grupo de refugiados sírios serve quitutes árabes salgados e doces. Os donos ainda falam pouco português, mas compensam em simpatia e nas delícias.

R. Cônego Eugênio Leite, 764, Pinheiros. tel. 98310-5607. facebook.com/Damascus-Doce-Arabe

Palestina
Al Janiah
Foi na ocupação Leila Khaled que os cinco refugiados palestinos (um nascido no Brasil e outros quatro que viviam na Síria) se conheceram e se juntaram para abrir o bar. As referências políticas estão nas atividades culturais e até na carta de drinks -Palestina Libre, Retorno a Haifa e Jaffa Sunrise. Há também porções para dividir e sanduíches, como os de falafel e kafta. Aberta em janeiro, a casa costuma lotar nos fins de semana.

R. Álvaro de Carvalho, 190, Centro, tel. 98392-9246. facebook.com/Al-Janiah-183073728713846

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AMÉRICA CENTRAL

Haiti
União Social dos Imigrantes Haitianos
A Usih conseguiu, em janeiro, um acordo para alugar um antigo sobrado no Glicério, em troca da reforma do local. Para arcar com as obras, Fedo Bacourt, um dos coordenadores da união, iniciou uma vaquinha virtual, mas a meta de R$ 30 mil está longe de ser batida. A ideia é que, com um imóvel em condições, o grupo possa dar apoio a refugiados haitianos que chegam a São Paulo, com aulas de português e preparação para o Enem. Enquanto isso, promovem e participam de eventos.

usihaitianos.org. Financiamento coletivo: bit.ly/2cetGHn

Haiti
Satelitte Musique
O grupo de dez membros toca versões de músicas de compas, um ritmo haitiano com bastante percussão e riffs de guitarra caribenhos. Os integrantes se conheceram na Missão Paz, igreja no Glicério que é o principal ponto de apoio aos refugiados haitianos.

Haiti
Surprise69
Junto ao compas e ao rabòday, o rap é um dos ritmos mais disseminados no país caribenho. O trio estabelecido em São Paulo é formado por Negroflow, Mário Love e Realblack. Lançou neste ano o CD "Ayisyen Kila (Os Haitianos Estão Aqui)" e o videoclipe da música "Jistis", com cenas gravadas na avenida Paulista.

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