Prefeitura recorre a consulados e a empresas estrangeiras para reformar pontos da cidade

Eduardo Knapp/Folhapress

As bancas de flores do Arouche terão quiosques novos, abertas para os dois lados do largo. Os postes de luz ficarão abaixo da copa das árvores, iluminando mais o pedestre que a atual iluminação que só pensa nos carros. Calçadas serão alargadas, com um novo mobiliário urbano. Banheiros públicos novos, com design premiado, tentarão evitar o mictório improvisado que hoje atinge parte da praça à noite.

A promessa de se repaginar o centenário Largo do Arouche sai da fase internacional da política de doações que o prefeito João Doria (PSDB) persegue, em tempos de arrecadações em queda. O chapéu na mão municipal agora é dirigido a empresas estrangeiras e suas câmaras de comércio na cidade. Até os consulados estão recebendo propostas do prefeito.

Doria já teve quatro encontros com o cônsul da França e empresários franceses por conta do "promenade" (passeio, em francês) Arouche. Estes recorreram ao escritório de arquitetura franco-brasileiro Triptyque, que preparou em dois meses o projeto de requalificação do largo, sem cobrar honorários. Há outras missões em andamento, mas os anúncios das parcerias se antecederam a qualquer projeto concreto.

À companhia aérea Qatar Airways, Doria sugeriu um pacote orçado em R$ 20 milhões para zeladoria e paisagismo em 19 pontes sobre os rios Tietê e Pinheiros. A empresa ainda não confirmou a intervenção nas marginais, que formam a melancólica primeira impressão do estrangeiro que desembarca em Cumbica. Inicialmente, não haveria como contrapartida o direito de publicidade nas pontes.

O McDonald's já começou um programa piloto de dar empregos a moradores de rua. A empresas coreanas, o pedido foi para a adoção do Bom Retiro. O prefeito até ofereceu como nome fantasia "Little Seul", de pronúncia turística, o que acabou ofuscando qualquer boa intenção -o Arouche, mais sortudo, não virou "Little Paris".

A prefeitura informa que os portugueses teriam se oferecido a patrocinar uma nova iluminação do Theatro Municipal e a adotar a "praça" Portugal -na verdade, um canteiro de terra batida no encontro da avenida Brasil com a Rebouças. Há apenas um sofrido pequeno marco de concreto com azulejos naquele lugar de trânsito intenso, mas o consulado português não confirmou se existe qualquer projeto na prancheta.

De longe, a colaboração francesa parece a mais redonda, além do marketing e de anúncios. Com ou sem reforma, o consulado francês confirma que várias atividades francesas ocorrerão no Arouche durante a Virada Cultural, em maio, de baile de rua a apresentação de marionetes e filmes franceses. Música eletrônica também estará no cardápio.

Já a reforma física sugerida pelos arquitetos franco-brasileiros promete evitar os traumáticos projetos urbanos produzidos pela prefeitura na última década, do inóspito Largo da Batata à vasta pista de skate plana da praça Roosevelt. Também não cai no kitsch do neoclássico-fake parisiense que faz sucesso pelo Jardim Europa e arredores.

"O Arouche já é muito vivo, tem gente na rua de manhã até a noite, o que é ouro para o urbanismo", diz o arquiteto Greg Bousquet, 44, do Triptyque. Ele diz que as mudanças propostas visam apenas ampliar o espaço público e manter o fluxo de pessoas.

Bousquet convidou o escritório paulistano Módulo para participar da empreitada. No ano passado, o Módulo venceu um concurso de mobiliário convocado pela gestão do então prefeito Fernando Haddad (PT), mas as peças, de sanitários públicos e bebedouros a bancos com encosto e novos pontos de táxi, nem chegaram a ser implantadas.

Uma comissão de empresários está fazendo circular ilustrações do projeto para eventuais doadores, apesar de certo pessimismo em tempos de crise. As também francesas Readymake, agência de consultoria, e a ONG Instituto Cidade em Movimento, patrocinada pela PSA Peugeot Citroën, participaram da pesquisa com moradores e usuários para saber o que o Arouche precisa.

"Zeladoria talvez seja o maior problema. Limpeza, calçadas com buracos, bustos pichados", diz o empresário Leo Henry, 26, da terceira geração de proprietários do restaurante La Casserole, aberto em 1954. Ele, que também mora no largo há dois anos, sugere que as calçadas poderiam ser mais largas.

"O Arouche já tem lojas, cafés, restaurantes tradicionais como o meu e o Gato que Ri, novidades como o Barouche, botecos", celebra. "Tem até prédio novo quase pronto."

Nem tudo serão flores, porém, na transformação do largo. "Enquanto os problemas sociais do centro não forem solucionados, tenho dúvidas sobre intervenções estéticas", diz Gisela Gasparian, sócia da editora Ubu, que funciona no largo há pouco mais de um ano, em espaço compartilhado com um escritório de arquitetura e outra editora.

Ela explica que a insegurança piorou nesse último ano e que o número de "nóias", os viciados em crack, e moradores de rua perambulando por ali aumentou. "Se for apenas para tirá-los daqui e mandar para outros lugares, estaremos repetindo erros passados."

Na gestão do prefeito Gilberto Kassab, as praças da Sé e da República foram reformadas ao custo de R$ 7,2 milhões em 2007 (R$ 13,3 milhões hoje, de acordo com a calculadora do Banco Central); 90% desse dinheiro era crédito do Banco Interamericano de Desenvolvimento, o BID. Meses depois, já estavam quase tão sujas e vandalizadas quanto antes.

PASSADO FRANCÊS

Há poucas experiências similares. O cônsul francês, Brieuc Pont, 42, que morou em São Paulo na adolescência, com os pais, e assumiu o posto há sete meses, brinca que o único grande presente assim foi a "estátua da Liberdade", em Nova York, obra francesa para o aliado de primeira hora.

Em São Paulo, houve poucas experiências similares. No governo de Marta Suplicy, a prefeitura de Milão patrocinou a reforma de uma fonte na praça Cidade de Milão, na Vila Nova Conceição, e um fundo de cidades contra a pobreza, sediado em Genebra, doou US$ 65 mil em 2004, para a criação do Restaurante-Escola, que forma cozinheiros, na Câmara Municipal. Outras parcerias não foram adiante.

Para o cônsul Pont, esse projeto está bastante respaldo. São 700 as empresas francesas na cidade. "O Arouche já é um 'pedacinho da França' em São Paulo, com sua banca de flores e a cozinha do Casserole, que tem o que qualquer francês gosta de comer."

Tanto ele quanto seu conterrâneo Bousquet, o arquiteto, repetem o mantra de que "não se tratará de colonização ou de imposição francesa na área, estamos chegando com muito respeito" (o que diz mais sobre a insegurança de muitos locais com a presença estrangeira do que de um eventual plano de dominação a partir de uma praça).

O largo surgiu ainda no século 19, no terreno onde ficava a chácara do tenente José Arouche de Toledo Rendon, primeiro diretor da Faculdade de Direito de São Paulo, no Largo São Francisco. O casarão principal da família do homem que tinha sido procurador da coroa portuguesa na pequena São Paulo de então ficava onde hoje está a avenida Vieira de Carvalho. Treinamentos militares aconteciam por ali, muito antes de virar, décadas depois, palco da mais abastecida feira livre da cidade, de ter bebedouros para cavalos e burros, e até uma escola pública por onde passou o ator e comediante Grande Otelo.

A história francófona do Arouche é mais recente, mas vai além do Casserole e do mercado de flores instalado ali em 1953. A sede da Academia Paulista de Letras foi projetada pelo arquiteto francês Jacques Pillon. O mais alto prédio do largo, o Arlinda, saiu da prancheta do alemão Franz Heep, que trabalhou quase 15 anos em Paris, três dos quais para o mestre Le Corbusier.

Nas últimas décadas, apesar do charme, o Arouche foi sendo retalhado por sucessivos planos de trânsito e ampliação de suas vias -em 1949, muitas árvores centenárias vieram abaixo para novas pistas. Em fevereiro de 1954, o então prefeito Jânio Quadros chegou até a prometer novos jardins e "viveiros com aves ornamentais". Jânio se licenciaria da prefeitura quatro meses depois para se candidatar ao governo do Estado. Seu projeto jamais foi entregue.

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Arquitetos trocam de 'casa' por causa de obra

Eduardo Knapp/Folhapress
Greg Bousquet, Gui Sibaud e Carol Bueno, arquitetos do Triptyque

Até o projeto no Largo do Arouche, o escritório Triptyque era mais conhecido por elogiadas obras privadas, como edifícios para a incorporadora IdeaZarvos, na Vila Madalena, um retrofit de um edifício de escritórios no Rio de Janeiro, e o instigante prédio formado por cubos envidraçados que abriga o restaurante Chez Oscar, na rua Oscar Freire, nos Jardins.

Criado há 17 anos em São Paulo pela brasileira Carolina Bueno e pelos franceses Guillaume Sibaud, Olivier Raffaelli e Greg Bousquet, que se conheceram ainda nos tempos de faculdade, na França, o Triptyque decidiu se mudar para o centro da capital paulista.

A partir de maio, deixará um casarão na avenida Europa para se instalar em um prédio modernista desenhado pelo arquiteto Oswaldo Bratke, em 1956, na esquina da rua Araújo com a Major Sertório. Ao lado da casa noturna Love Story, fica entre o edifício Copan e o Largo do Arouche.

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