Chef faz trabalho singular com peixes e frutos do mar em 'botecão' na Barra Funda

Rodrigo Felício, 38, vendeu dois pianos, um violão, um carro. Estava a abandonar uma casa, uma horta e a carreira na música erudita, ritual que repetiu outras vezes até se assentar. Foi, pois, aprender a cozinhar em Paris.

Desde então, absorveu as técnicas clássicas, passou pelo hotel Ritz (onde descansou ervilhas à exaustão na praça de peixes), pela Brasserie (na qual Erick Jacquin o chamava de Woody Allen, em referência aos seus "óculos fundo de garrafa"), pelo D.O.M. (o lugar onde passou mais tempo e fez bons amigos), pelo Chou (onde aprendeu a admirar o produto minimamente manipulado em apresentação meio bruta).

Essa caminhada, com suas dores e delícias, o levou ao Capivara, um lugar meio desajeitado e encantador e particular, escondido na Barra Funda, embalado pelas mágicas vicissitudes de Miles Davis, pelo piano de Thelonious Monk, pela voz suave de Chet Baker. É ali, num canto estreito, que nasceu com um fogãozinho portátil de acampamento, que Felício faz uma cozinha singular, sem paralelos em São Paulo, à vista do cliente.

Apoiado nos peixes e nos frutos do mar, essa fonte inesgotável de maravilhamento –como dizia o estudioso Brillat-Savarin (1755-1826)–, ele alimenta certa inquietude para manter-se estimulado e dela resulta um cardápio dinâmico e ousado, com traços da França, do Japão, da Coreia. São apenas três itens a variar a cada dia, para compartilhar ao centro da mesa (essas, também compartilhadas), ligados por um eixo comum: exibem técnica apurada, bons preços e uma tentativa constante e obstinada de fugir do senso comum.

Ainda que algumas estruturas se repitam, os produtos mudam. Ou, ainda que os produtos se mantenham, recebem tratamentos diversos e resultam diferentes. Felício busca, por exemplo, esgotar as possibilidades da tainha, que há pouco esteve em seu auge, ovada, rechonchuda, viçosa. Ela surge, pois, crua, em fatias firmes e róseas besuntadas em manteiga noisette, dourada, potente, a exalar um aroma acastanhado (R$ 34).

Em outro preparo, a tainha vai à frigideira de ferro, bem quente, somente do lado da pele, onde concentra mais gordura. Esta fica seca e crocante sem que a carne perca umidade e suculência, uma beleza. A posta é acomodada sobre um caldo profundo, cuja base vem do cozimento do vôngole, também parte da receita. Enriquecido com um suco concentrado de nirá (hortaliça japonesa do mesmo gênero do alho), ganha tom esverdeado, intensidade e uma suave picância.

Os pratos, aliás, geralmente são envolvidos em caldos que convidam a mergulhar um naco de pão e secá-los até a última gota –é tentador repetir o gesto diante do sarnambi, molusco branco e carnudo imerso num caldo amanteigado de toque ácido, mas excessivamente salgado.

Da tainha são aproveitadas ainda as ovas. Secas e salgadas na casa, transformam-se na nobre bottarga que aparece em lâminas finas sobre fatias de sororoca crua, peixe da família do atum, de carne clara e untuosa, de sabor delicado (R$ 36).

Felício mostra similar habilidade para lidar com os vegetais, sobretudo orgânicos, da fazenda Santa Adelaide, no interior de São Paulo. Vem de lá a beterraba que dá origem a um reconfortante creme liso e aveludado, com creme de leite "reduzido até tostar" e manteiga "à vontade", diz o chef. Milho refogado, mas firme, e uma cebolinha japonesa em conserva apimentada desestabilizam o paladar e dão graça ao conjunto.

Também vem da fazenda a mexerica que vira compota, com um leve e estimulante amargor. É servida ao lado de três belos queijos brasileiros de leite cru.

Bem, para alcançar equilíbrio e ineditismo, Felício parece reunir virtudes basilares: persegue bons ingredientes, tem destreza para lidar com o produto bruto, realiza cocção precisa e manipula a carne, frágil, com respeito e delicadeza. Um jovem garçom, interessante e interessado, fica a recitar seus pratos com riqueza de detalhes –pode ser exaustivo, pode ser sedutor.

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CAPIVARA
Onde r. Dr. Ribeiro de Almeida, 157, Barra Funda, s/tel.
Quando ter. a qui., das 19h às 23h30; sáb., a partir das 12h (até acabarem as porções)
Avaliação muito bom

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