Vagos ou encalhados, casarões em áreas nobres de São Paulo esperam por algum uso

Gabriel Cabral/Folhapress
Casarão para venda no Jardim América, na zona oeste de São Paulo
Casarão para venda no Jardim América, na zona oeste de São Paulo

As leis, regras e exceções que regem os bairros loteados pela Companhia City nas primeiras décadas do século passado têm o padrão Constituição Federal de complexidade e prolixidade.

O que servia como proteção de suas características, porém, tem esvaziado muitos bairros como Pacaembu, Jardim Europa, Jardim América e Alto de Pinheiros.

Casarões de 500 a 2.000 m² têm desbotado nas regiões mais valorizadas de São Paulo, assim como suas eternas placas de "Vende-se ou "Aluga-se".

No site de imobiliárias VIP, vários desses imóveis estão em oferta desde 2012 e 2013, antes mesmo da depressão econômica.

O esvaziamento de quadras inteiras em áreas tão centrais surpreende em um município apinhado em suas beiradas. Cidades como Londres e Nova York tiveram esse tipo de discussão, mas várias décadas atrás. Por lá, tornou-se comum que antigos palacetes fossem subdivididos. Apenas o interfone na entrada delata que a propriedade foi segmentada em três ou quatro apartamentos. Nos bairros-jardins de São Paulo, muitos tombados, isso é impossível: cada lote só pode ser ocupado por uma única família –e em boa parte deles o uso é estritamente residencial.

Gabriel Cabral/Folhapress
Piscina em casa na av. Diógenes Ribeiro de Lima, em Alto de Pinheiros, na qual incorporador Laurent Bernard queria construir casa de repouso
Piscina em casa na av. Diógenes Ribeiro de Lima, em Alto de Pinheiros, na qual incorporador Laurent Bernard queria construir casa de repouso

"A [avenida] Diógenes [Ribeiro de Lima] virou um corredor de trânsito. É difícil imaginar que volte a ter o mesmo uso residencial", diz Maria Ignez Marcondes Barretto, ex-presidente da Sociedade de Amigos do Alto de Pinheiros.

"Para muitos moradores, faria mais sentido ter vilas de casas com metragem menor ou pequenos prédios de dois andares, com farmácia ou café no térreo, do que diversas casas grandes e vazias."

Um grupo de investidores pretendia abrir a primeira unidade de uma rede franco-belga de casas de repouso de alto padrão naquele bairro. Para obter um terreno de 5.000 m², cercado de verde e com área residencial no centro do lote, o executivo Laurent Bernard já estava escolhendo vários imóveis, quando percebeu que a obra poderia ser facilmente embargada. "O tamanho máximo da testada [largura do terreno] ali é de cem metros, algo que inviabiliza nosso projeto. Burocracia, brechas jurídicas e morosidade espantam o investidor", diz. "Já estamos procurando outras regiões. Para a vida do bairro, é ruim."

Gabriel Cabral/Folhapress
O investidor e consultor Laurent Bernard
O investidor e consultor Laurent Bernard

Os loteamentos da Companhia City, inspirados nos bairros-jardins britânicos, foram os subúrbios de sua época, instalados nas então afastadas várzeas do rio Pinheiros. Como em um condomínio fechado, estilo Alphaville, o loteador ditava regras claras da geometria dos imóveis (da altura máxima aos recuos laterais, na fachada e nos fundos), com sugestão do tamanho do muro e o traçado das ruas. Famílias então numerosas, com empregados que dormiam no trabalho, pediam construções grandes para terrenos nem tanto.

Nos mapas originais do loteador, porém, havia terrenos pré-determinados onde podiam ser instalados postos de gasolina e serviços e estabelecimentos de comércio.

A partir da Lei de Zoneamento de 1972 e do tombamento de alguns desses loteamentos, em 1986, o uso estritamente residencial foi expandido, acabando-se com os tímidos espaços mistos previstos no início. Diversas associações de bairro começaram a se opor a novos usos ou à possibilidade da chegada de mais moradores.

Gabriel Cabral/Folhapress
Fachada de casas à venda no Pacaembu, na zona oeste
Fachada de casas à venda em Higienópolis

"A lei de 1972 acata as restrições do loteador, desde que estejam no memorial do registro de imóveis", diz o advogado Marcelo Terra, especialista em direito imobiliário. "Há brigas no Judiciário sobre a interpretação, pois mudanças de uso são aprovadas quando há descaracterização da área. Há um consenso que um arranha-céu descaracteriza, mas há muita coisa que não é tão clara."

Em sua opinião, "a cidade não deveria estar presa a regras estabelecidas por privados há mais de 60 anos. O interesse público deveria prevalecer".

Ainda assim, as transformações aconteceram lentamente, ainda na ilegalidade. Quando a avenida Europa e a rua Colômbia já sofriam o êxodo residencial, foram permitidos ali showrooms, mas não comércio.

A diferença? Dezenas de revendedoras de carros de luxo se instalaram na região, onde supostamente não se podia emitir nota fiscal. Por vários anos, a ocupação da alameda Gabriel Monteiro da Silva por lojas de decoração e design estava à margem do zoneamento. O jeitinho encontrado por proprietários com um mico imobiliário nas mãos vai da instalação de escritórios a pequenas empresas em ruas exclusivamente residenciais, sem uma placa sequer na entrada.

Em áreas tombadas do Jardim Europa e do Pacaembu, construções e demolições que deveriam ser submetidas aos órgãos do patrimônio histórico são protocoladas como simples reformas. Depois, a velha casa vai ao chão. Muitos proprietários que ocupam um espaço mínimo no casarão herdado da família discretamente alugam cômodos para terceiros. O unifamiliar virou multifamiliar.

A banqueteira Aninha Gonzalez, moradora de uma casa de 580 m² na rua Atlântica, no Jardim América, questiona a rigidez da lei. "Adoraria dividir este lote, por exemplo, entre meus dois filhos. Já hospedei meu primo, quando ele se separou, na edícula, que tem um quarto com banheiro. Por que não poderia alugar esse espaço legalmente?"

Para ela, muitas casas nos Jardins "poderiam ser divididas entre quatro ou cinco amigos, que morrem de medo da solidão no futuro e que poderiam compartilhar os mesmos serviços". "Locação ilegal não protege o proprietário nem o inquilino", afirma.

Mas o tema ainda é muito sensível. Diversos corretores especializados nesses bairros conversaram com a reportagem, sob a condição de anonimato, e deram uma lista de razões para tantas propriedades ociosas.

De preços ainda irreais em relação ao valor do metro quadrado -de proprietários sem pressa por liquidez- à insegurança de imóveis vazios vizinhos a vias sugeridas como atalhos por aplicativos de trânsito.

A associação Ame Jardins, que tem entre seus fundadores o prefeito João Doria, foi das mais ativas na campanha contra a
flexibilização de usos na Lei de Zoneamento aprovada no ano passado. Faixas com seu logotipo foram afixadas em casarões, exigindo a manutenção da "zona estritamente residencial". Restaurantes, bares, casas de show, salões de festas, supletivos, cursos preparatórios e mercados continuam vetados, por exemplo, nas avenidas Brasil, Europa e Pacaembu.

Os diretores da Ame Jardins não estavam "disponíveis para entrevista", segundo a assessoria de comunicação da entidade.

O presidente da associação Viva Pacaembu, Rodrigo Mauro, afirmou que foi uma vitória "preservar o bairro tombado" e restringir usos comerciais e de serviços, assim como a altura limite de construções nas chamadas "zonas corredores", de dez metros de altura.

Mesmo a ex-presidente da associação de Alto de Pinheiros, favorável à flexibilização, explica o temor contra restaurantes e bares. "Se há barulho ou lixo, a prefeitura falha muito na fiscalização, então fica mais fácil proibir", diz Ignez Barretto.

Para o incorporador Eudoxios Anastassiadis, as restrições mantidas são "retrógradas". "Já cogitei empreendimentos no Pacaembu, em Alto de Pinheiros e até estudei a 'lei de vilas' para fazer pequenos condomínios horizontais com casas", conta.

"Mas, com tanta lei que depende da interpretação do momento, com essa insegurança jurídica, eu desisti." Ele já construiu diversos prédios baixinhos de luxo, com até quatro andares, na rua Minas Gerais, em Higienópolis, e também no Jardim Paulistano, no Alto da Lapa e em Alto de Pinheiros.

Gabriel Cabral/Folhapress
Portão de casa à venda na rua Itápolis, no Pacaembu
Portão de casa à venda na rua Itápolis, no Pacaembu

"Há regras muito elitistas, como lote mínimo de 250 m² no qual se edifica 400 m² para uma única família. Será que os filhos deles poderão morar em uma casa assim?", pergunta. "Se não puder ter um café na esquina, será que o jovem vai querer morar ali?'

Na primeira metade do século passado, São Paulo assistiu a batalhas similares na avenida Paulista. A via símbolo da cidade também nasceu como um loteamento privado, que combinava palacetes, um hospital, duas escolas e o Instituto Pasteur, e viu as regras dificultarem usos comerciais e de serviços à medida que os palacetes dominaram o local. Nos anos 1950, entre partilhas tumultuadas de herança, o aumento do trânsito e a valorização dos terrenos fez com que os próprios donos dos casarões quisessem prédios na região antes que um processo de tombamento fosse feito. A destruição das protegidas mansões foi feita às pressas, sem planejamento.

NOVOS USOS

Arquitetos sugerem soluções diferentes para fazer de imóveis ociosos pequenas (e aconchegantes) vizinhanças.

Dividir... | O arquiteto Gustavo Cedroni, do escritório Metro, há tempos pensa no como subdividir imóveis amplos e já fez propostas para potenciais investidores. A pedido da sãopaulo, ele desenhou um croqui onde sugere a subdivisão de uma casa já existente (veja nesta página). "O que vai salvar nossas cidades não é começar a construir tudo do zero, mas saber reutilizar as estruturas já existentes e às vezes pouco adaptadas para a realidade do nosso século." Cedroni indica que reformas e adaptação seriam mais fáceis dividindo casarões em apartamentos por andar. A laje no topo pode servir de área de lazer, e garagens poderiam receber lavanderia, zeladoria e cozinha.

... e Multiplicar | "Andei com o mapa do zoneamento na mão para escolher onde poderia comprar um imóvel que pudesse desmembrar em dois", diz a arquiteta Cecilia Reichstul. A apenas duas quadras do Alto de Pinheiros, ela desenhou, junto à sócia Clara Reynaldo, duas casas espelhadas no terreno de 10 x 28 m. Uma para sua família. Outra, como investimento. Como são geminadas, Reichstul otimizou os cinco metros de largura de cada imóvel com claraboias e pátios internos para garantir ventilação e iluminação naturais. Para sua casa, fez 205 m² de área construída. Tem lavanderia, farmácia, banco e escola por perto. "De fora, as duas parecem uma casa só. Dá para adaptar, sem descaracterizar", diz.

Publicidade
Publicidade