Itaim Bibi tem metro quadrado mais caro de São Paulo e vê futebol de várzea desaparecer

Não existem registros de que os compositores Chopin e Schubert tenham feito uma partitura juntos no já distante século 19. Mas, para surpresa da música clássica mundial, São Paulo promove o encontro dos dois diariamente. Na capital, mais especificamente na região do Itaim Bibi, eles vivem grudados, abraçados, inseparáveis. Da esquina das ruas Frederic Chopin e Franz Schubert, porém, não brotam melodias. Ali há um berçário de prédios de luxo.

O mais recente, em fase final de obras, é o edifício Saint Paul. Com unidades que têm até 864 m² e 12 vagas na garagem, o empreendimento faz parte de um conjunto de alto padrão que se consolidou próximo à avenida Cidade Jardim com torres parecidas –todas de tom ocre, quase um estrogonofe clarinho, e cobertura verde escura que rende ao topo uma cara de telhadinho.

Longe de serem os únicos imóveis do bairro da zona sul voltados para as classes mais ricas, os prédios compõem um mercado imobiliário de pompa que está em expansão e transformou o Itaim no metro quadrado mais caro de São Paulo. De acordo com dados do Secovi-SP (o sindicato da habitação), lançamentos no distrito tiveram, no ano passado, preço médio de R$ 19.830 por metro quadrado. Para comparar, Moema (zona sul) aparece na segunda colocação do ranking, com valores que ficam em R$ 18.842.

Celso Petrucci, economista-chefe da entidade, afirma que o Itaim sempre esteve entre as zonas mais elitizadas. "Mas só tomou a dianteira há pouco tempo", diz. "A mudança ocorreu, principalmente, por causa de alguns lançamentos luxuosos que elevaram o preço médio." Hoje é possível encontrar apartamentos por ali que ultrapassam a cifra dos R$ 15 milhões.

"O Itaim é um bairro de desejo não apenas para quem trabalha na Faria Lima, mas também para quem sonha em fazer tudo a pé e ter acesso a bons restaurantes e a serviços de alto padrão", avalia Piero Sevilla, diretor de incorporação da Cyrela. "Isso permite ao mercado apostar em sofisticação, exclusividade e design. É o que os clientes buscam."

A construtora é uma das que mais apostam atualmente na área, com destaque para três empreendimentos. O Pininfarina, entregue neste ano, tem design assinado pelo escritório italiano de mesmo nome, que fez projetos para marcas de carro como Ferrari e Rolls Royce. O One Sixty conta com unidades de até 592 m². "Mas a joia da coroa é o Heritage", gaba-se Sevilla.
O edifício, previsto para 2020, terá 31 andares e apenas uma unidade por pavimento, com plantas que vão de 570 m² a 1.036 m² (a metragem sai, em média, por R$ 30 mil). A expectativa é que se torne um dos espigões mais altos de São Paulo, de onde provavelmente será possível ver as árvores e o gramado do parque do Povo, uma espécie de Central Park paulistano.

DA VÁRZEA AO PARQUE

Se os prédios do Itaim estivessem de pé há 50 anos, assistiriam de camarote a uma das histórias mais lembradas do bairro. Onde hoje está o terreno do parque do Povo, enfileirava-se naquela época o time de futebol de várzea do Canto do Rio, com seu uniforme listrado. A escalação do clube em 1968 estava na ponta da língua dos moradores: Valter, Passarinho, Japonês, Taturana, Tucano, Clóvis, Luisinho, Bertinho, Balinho, Massao e Dino. No banco: Helio, Sunao e Cabralzinho. Manezinho era o treinador.

A equipe enfrentaria naquele dia os jogadores de Taboão da Serra, na seminfinal de um campeonato paulista de amadores que mobilizava diferentes agremiações. "A partida era no nosso campo. Ali era tudo terra, chácara, brejo. Se alguém chutasse um pouco mais forte, a bola ia parar no rio Pinheiros", relembra Silvio Barlette, 68. Também conhecido como Pavão, ele foi um dos goleiros de gerações posteriores e até hoje se encontra com antigos companheiros para jogar bocha e tomar cerveja.

Após um empate no tempo normal, a equipe de Taboão venceria nos pênaltis e, mais tarde, levantaria o troféu de campeã do torneio. Mesmo derrotado, o Canto do Rio terminaria na terceira colocação, até hoje uma das maiores glórias de sua história.

Sunao Sageshima, 69, era um dos volante do time e viu tudo do banco de reservas. "A gente treinava todo domingo de manhã. Onde hoje está o parque, ficava o nosso campo e a sede do clube."
Fundado em 1941, o Canto do Rio tinha no terreno um salão de festas para 200 pessoas, duas canchas de bocha, um campo de grama sintética, outro normal, um bar, seis vestiários e duas churrasqueiras. E não era o único time a utilizar o espaço.

Nos anos 1960, 14 gramados de futebol existiam no local. Já nos anos 1990, oito deles resistiam –cada um organizado e administrado por um clube de várzea diferente, em uma das principais concentrações do tipo na cidade. Além de receber as partidas, muitas delas acompanhadas de torcida, o ambiente era tomado por churrascos aos fins de semana, carteado, cerveja à vontade e petiscos de boteco. Com a prática do esporte consolidada por décadas, o local foi tombado pelo governo estadual. A publicação no Diário Oficial, de 1995, diz que o espaço é um bem cultural de interesse antropológico e que o objetivo do tombamento é a preservação da base material para a realização das atividades culturais e de lazer, com destaque para a histórica prática do futebol de várzea.

"Mas o tombamento foi desrespeitado pela prefeitura após a reforma", diz Simone Scifoni, professora do departamento de Geografia da USP. Reaberto em 2008 após um período de obras que criou a atual estrutura do parque do Povo, a área verde do Itaim tem hoje cerca de 130 mil metros quadrados e oferece aos frequentadores três quadras de cimento, aparelhos de ginástica, pista de caminhada, ciclovia e parquinho infantil.

O único campo de futebol que restou está cercado, sem as traves, impossibilitando novas partidas. Nenhum clube joga mais por ali. A maior parte deles fechou as portas.

O gramado sobrevivente era, no passado, a sede de outro time: o Clube do Mé. Extinto após a criação e a reforma da área municipal, ele era conhecido por às vezes reunir nomes como Rivelino e Ademir da Guia –craques históricos de Corinthians e Palmeiras, respectivamente– para bater uma bolinha. Seus churrascos costumavam ser comentados em diferentes bairros, principalmente pelas festas regadas a sambistas de peso como Jamelão.

Já o gramado do Canto do Rio ficava onde hoje estão as três únicas quadras, todas cimentadas. "Depois que perdemos o nosso espaço, nunca mais joguei futebol", diz Pavão. "Como somos o último clube daquela época que ainda está ativo, queremos administrar o campo que existe no parque do Povo. Podemos fazer o futebol voltar ao Itaim. É uma tristeza ver um pedaço da nossa história cercado, sem atividade", desabafa Antonio Bernardo, 78. Apelidado de Tucano, ele é ex-presidente do time.

Em nota, o Condephaat (que gere o patrimônio histórico do estado) afirma que aprovou o projeto da prefeitura para a criação do parque pois ele garantiria o uso popular e democrático do espaço. O órgão ressalta que pediu o cadastramento dos clubes de várzea para verificar a necessidade de criação de novos campos de futebol e que, em 2016, a gestão municipal elaborou uma minuta para regular o assunto.

BAIRRO DE MUDANÇAS

O parque do Povo não é o único exemplo de transformação por qual o Itaim passou nas últimas décadas. As chácaras foram pouco a pouco dando lugar ao cimento, enquanto diversos rios tiveram seus caminhos canalizados. É o caso do córrego do Sapateiro, que foi engolido pela avenida Juscelino Kubitschek –o nome do curso d'água vinha dos diversos curtumes que existiam em
suas margens.

A inauguração da via que homenageia o ex-presidente ocorreu no final dos anos 1970, marco do início do processo de verticalização de toda a área. Atualmente, o Itaim é cercado por prédios envidraçados, onde é gerado boa parte do PIB empresarial brasileiro. Mas, ao andar pelo miolo do bairro, o horizonte cheio de construções que impedem pedestres de verem o céu dá uma trégua.
Aqui e ali, aparecem predinhos baixos que guardam restaurantes por quilo, fábricas de guarda-chuva e lojinhas de todo o tipo. Pelas calçadas, engravatados dividem espaço com mulheres que calçam Louboutin.

"Queríamos lançar mais empreendimentos por lá, mas é difícil encontrar terrenos disponíveis. É uma dificuldade comum nas melhores regiões de São Paulo", diz Sevilla, diretor da Cyrela. Petrucci, do Secovi, concorda. Segundo ele, o Itaim tem potencial para receber mais lançamentos, mas a falta de espaços livres e a crise recente no setor imobiliário atrapalham.

A escassez de lugares gerou um caso curioso: o edifício Pátio Victor Malzoni, onde funciona o Google, teve de ser construído no terreno em que está a Casa Bandeirista, na Faria Lima. Para que a construção colonial tombada não fosse demolida, os arquitetos optaram por criar um vão-livre que englobasse as paredes históricas, fazendo com que a residência fosse envolta pelo caixote espelhado. No térreo, pufes coloridos recebem trabalhadores que tiram um cochilo após o almoço, casais que fazem selfies e o repórter que toma notas para este texto.

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