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A coisa melhor da vida
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BARBARA GANCIA
COLUNISTA DA REVISTA sãopaulo
A estação CPTM da Luz esfrega ombros com a cracolândia e, em horários de pico, é um bulício dos infernos.
No seu entorno há uma degeneração do tipo que ganha destaque nos relatórios da ONU-Habitat. E quem anda por lá pode não se dar conta, mas, em certas horas, o saguão da Luz toma a forma de um palácio de Potala, de um shangrilá à paulista. E vira um dos lugares mais gostosos da cidade.
Tudo por conta de um piano Fritz Dobbert, muito do desbotado, que fica no meio do caminho dos passantes com um adesivo no lombo: "Toque-me, sou seu".
Na primeira vez em que dou de cara com o instrumento (parte de projeto cultural público que já dura há mais de ano e rendeu até CD), um senhor da vigésima idade com sorriso de Zé Bonitinho tortura as teclas. Com a mesma impessoalidade de quem quer saber as horas, pergunto se ele sabe tocar. "De jeito nenhum, é a primeira vez", me diz, como se estivesse dando entrevista no sofá da Hebe. "Sinto-me como um pianista de concerto."
A boa acústica do espaço joga para os cantos o burburinho dos que vão e vem e traz o som do piano para o centro das atenções. Algumas pessoas param para ouvir o trucidar das notas. Outras, que aproveitaram para fazer um providencial pit stop nos pés, vão se deixando enlevar.
Não estamos ouvindo música, apenas teclas sendo marteladas. Mesmo assim, tenho a impressão de que, a qualquer momento, Krishna irá adentrar a estação e vir ao meu encontro.
No meu cangote, um homão com barba de dois dias e fedendo a um destilado que poderia servir para abastecer carro flex puxa conversa: "Atrevido o pianista, hein?" Concordo com a cabeça e saio de perto para evitar que a divindade hinduísta me flagre em má companhia.
Uma moça com ar de secretária júnior vem se aproximando soltinha feito arroz Brejeiro. Pergunto se quer tocar e ela concorda. Nosso Nelson Freire cede espaço e ela inicia um "Menino da Porteira" tão acelerado que temo pelo estouro da boiada no vale do Anhangabaú.
Um senhorzinho estaciona ao lado e confidencia que sente vontade de tocar toda vez que passa por ali a caminho de casa. A sua timidez ele justifica como respeito pela propriedade alheia: "Temos de ter autorização para mexer no que não é nosso".
O bêbado, que continua ali dando sopa, encontra assunto para seu palanque. "Que nada! O piano pertence ao povo. Todos podemos tocar. Senta aí e toca, vamos!" O sujeito some do mapa na mesma hora.
A mocinha que apresentou o clássico sertanejo já foi aproveitar o dia de folga nas compras da José Paulino. Um grupo de evangélicos comanda a música e percebo que estão a dois passos do paraíso quando começam a entoar o hino "Grandioso És Tu".
Um idoso de bobeira desperta minha curiosidade. "Fazendo hora pra não ir ter com a patroa?", pergunto. "Não, não", responde. "É que isto é a coisa melhor da vida."
Encosto os braços no piano e fico ali sorvendo as palavras que acabo de ouvir. Estou mesmerizada pelo som, o sol de inverno começa a se espichar para dentro dos arcos da estação...
Não há como este momento não ser a coisa melhor da vida.
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