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20/09/2010 - 08h55

Em busca de voluntários preparados, ONGs profissionalizam seleção

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FLÁVIA MANTOVANI
DE SÃO PAULO

O processo é longo e pode envolver entrevista, dinâmica de grupo, cursos, estágio supervisionado, prova de conhecimentos gerais e formatura no final. Em muitos casos, quem falta é eliminado. Em outros, o número de candidatos por vaga chega a 15 -o equivalente à procura pelo curso de Relações Públicas na Fuvest 2010.

Paulo Pampolin/Hype/Folhapress
Patrí­cia Raymundo, voluntária no hospital Sepaco pela associação Viva e Deixe Viver
Patrí­cia Raymundo virou voluntária no hospital Sepaco depois de passar por treinamento na associação Viva e Deixe Viver

A maratona, quem diria, não é para conseguir um emprego ou uma bolsa de estudos: é para fazer trabalho voluntário. Se antes bastava querer para doar seu tempo em prol de crianças pobres, pessoas doentes, deficientes ou das florestas do planeta, hoje não é bem assim. Organizações não governamentais estão profissionalizando o recrutamento de voluntários, promovendo seleções e cursos de capacitação que podem durar quase um ano.

Os motivos para a mudança são muitos. A necessidade de preparar o voluntário para lidar com a metodologia da ONG, com o público atendido e com o ambiente de atuação é um deles. Outras razões são a tentativa de torná-lo mais comprometido -"um voluntário descompromissado e despreparado mais atrapalha do que ajuda", dizem alguns- e a inevitabilidade de ter que selecionar diante de uma procura maior do que a demanda.

Para Sílvia Naccache, coordenadora do CVSP (Centro de Voluntariado de São Paulo), trata-se de uma tendência, principalmente nas ONGs de São Paulo. "As pessoas vinham cheias de boa vontade, mas queriam fazer do jeito delas, a qualquer hora. Elas precisam incluir aquilo na rotina."

Segundo ela, o perfil dos voluntários vem mudando. "Antes era coisa de mulher, mais velha, aposentada. Hoje vemos muitos homens, jovens, pessoas que estão no mercado de trabalho."

O CVSP organiza palestras para candidatos a voluntário. Oferece, ainda, um curso de gestão de programas de voluntariado para ONGs.

A Anima, associação que atua há 15 anos com prevenção do HIV e educação, mudou as práticas após participar de um deles. O recrutamento informal de voluntários foi substituído em março por um processo organizado, com 46 vagas. "Antes as pessoas vinham por indicação de amigos. Muitas faziam um trabalho bacana, mas pontual: arrumavam emprego e saíam. Buscamos mais comprometimento", diz Lucimar Marques, diretora de comunicação e marketing.

Os 12 trabalhos

Hoje, a maioria das ONGs organiza ao menos uma palestra ou entrevista inicial. Mas há casos bem mais extremos. Um exemplo é o processo seletivo do Canto Cidadão, que tem, entre outros projetos, um grupo de palhaços que atua em hospitais. Antes, havia prova de conhecimentos gerais, entrevista, dinâmicas de grupo, formação teórica de 60 horas e prática de 20.

Desde o primeiro semestre, o processo ficou ainda mais difícil: não há mais a prova, mas, antes de fazer o treinamento, é preciso passar pelo Caminho do Protagonista, com 12 tarefas inspiradas nos 12 trabalhos de Hércules (leia quadro ao lado).

"Como a procura é grande, poderíamos simplesmente selecionar por ordem de chegada. Mas o que queremos é formar agentes transformadores. E não deixa de ser também uma seleção natural. Quem não estiver convencido desiste", diz Felipe Mello, um dos fundadores. São mais de 3.000 interessados aguardando.

Como a procura é alta, nem todos são aprovados. "Criamos critérios. Há quem diga: 'Vocês estão sendo cruéis, a pessoa só quer ajudar'. Mas sabemos que não podemos colocar alguém no hospital sem preparo", diz Mello.

O estudante André Solnik, 23, ouviu um "não" da primeira vez que tentou, em 2007. "Fiquei decepcionado e com raiva. Pensei: 'Se não passei num teste para ser voluntário como palhaço, não sirvo para mais nada'", brinca.

Ele diz, porém, que foi um estímulo para tentar de novo. O treino longo não o desanimou. "Pelo contrário. É descontraído, tem atividades ao ar livre, você entende melhor o trabalho." Deu certo: hoje, ele é o Doutor Gravisóles, palhaço no hospital Brigadeiro.

Segurança

Uma preocupação de ONGs que atuam em hospitais é com a segurança em relação à contaminação. No VER, grupo de voluntários do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, há palestras sobre o tema. "O voluntário precisa entender de biossegurança, para se proteger e proteger os outros", diz o diretor-executivo, Renato Terra.

São cinco meses de capacitação, entre palestras, prática e uma festa de formatura. Quem não se sentir preparado para atuar com os pacientes pode executar tarefas administrativas.

A palestra de segurança hospitalar é uma das que compõem a seleção de outra associação, a Viva e Deixe Viver, que atua com contação de histórias para crianças doentes. São todas aos sábados e, no fim, o candidato acompanha um contador mais experiente. É preciso pagar R$ 70 para cobrir as despesas. Entre a inscrição e o fim do processo, passa quase um ano.

Cerca de um quinto dos 500 a 600 inscritos ficam até o final. "Na primeira palestra, [o número] já diminui pela metade. As pessoas têm o desejo genuíno de ajudar, mas, quando se exige dedicação, muitas desistem. É uma espécie de autosseleção", afirma Valdir Cimino, presidente da associação.

Cimino decidiu criar o treinamento no início do projeto, quando uma mulher se ofereceu para contar histórias com ele e, diante de uma criança, começou a chorar. "Tive vontade de jogá-la pela janela! A própria criança falou para ela não chorar. "

Em casos excepcionais, a equipe pode desclassificar alguém. Uma ficha em que o candidato diz como agiria em certas situações críticas ajuda a identificar quem está fora do espírito da ONG. "Se não tivermos regras, se não for olhado como uma empresa, fica difícil administrar", diz Cimino.

Voluntários do Viva e Deixe Viver, Tony Silva e Patrícia Raymundo passaram pelo treinamento. "A gente fica ansioso, quer começar logo, mas hoje vejo que é necessário. Não é só aquela coisa bonitinha de fazer palhaçada, tem que estar capacitado", diz Tony.

Cibervoluntários

O cuidado para que o candidato entenda as regras é ainda maior no caso do ativismo ambiental. "Quando a pessoa vai pra rua levando a nossa causa, tem que estar muito segura", diz Pedro Torres, coordenador nacional de voluntários do Greenpeace.

A capacitação trata das campanhas defendidas pela ONG e treina para a abordagem não violenta. Para participar, é preciso passar por um filtro estreito: em São Paulo, já houve 500 interessados para 30 vagas. Saber escalar, mergulhar ou dar palestras conta pontos. "Infelizmente, não conseguimos abarcar todo mundo. Em São Paulo, precisaríamos de mais de dez Greenpeaces", diz Torres.

Uma alternativa dada a quem não passa na peneira é se tornar ciberativista, divulgando a ONG pela internet.
O trabalho on-line também já faz parte de uma organização tradicional: o CVV (Centro de Valorização da Vida), que conforta pessoas em sofrimento.

A ONG planeja formar esses voluntários com ensino a distância, mas, por agora, todos devem ir a um encontro de um fim de semana e a oito reuniões de três horas, com treino prático. Só é permitido ter uma falta.

Alguns desistem antes do final porque não gostam da metodologia. "Eles imaginam que vão aconselhar as pessoas, e nossa postura não é essa", diz Arthur Mondin, voluntário do CVV há 32 anos, que coordena o setor on-line.

Para os já voluntários, a disciplina também é grande: quem falta a um plantão deve repor na semana seguinte. Há um curso de reciclagem mensal, e só é permitido ter 25% de faltas por ano. "É a única maneira. Os momentos de depressão e de aflição não esperam. Estamos lidando com um assunto muito sério", justifica Mondin.

Tanta exigência não pode desanimar pessoas que poderiam estar fazendo a diferença? "Pode assustar um pouco, mas tudo é acertado antes, com clareza. O voluntário sente até segurança por saber que há um processo sério", diz Sílvia Naccache, do CVSP.Montar seleções como essas também pressupõe gastos, mas ela acredita que vale a pena porque a organização ganha voluntários mais fiéis.

Para Naccache, por mais que as ONGs venham profissionalizando a gestão, a essência do voluntariado não muda. "Isso não tira a emoção, o coração, a vontade de fazer a diferença."

Lei regula atividade

Para ser voluntário, é preciso assinar um documento declarando estar ciente de que se trata de atividade não remunerada, sem vínculo trabalhista. O termo de adesão faz parte da lei nº 9.608, de 1998, criada para evitar abusos dos dois lados, segundo Sílvia Naccache, coordenadora do Centro de Voluntariado de São Paulo. "Havia tanto o voluntário que não sabia seu papel quanto organizações que usavam o voluntariado como subterfúgio para não ter pessoas contratadas. Voluntário não é mão de obra barata."

DEPOIMENTO
FLÁVIA MANTOVANI
"Não basta ser bonzinho"

No auditório do processo seletivo da ONG que forma contadores de histórias em hospitais, uma senhora reclama alto: "Que história é essa de fazer curso no sábado? Não pode faltar, não pode isso, aquilo. E tudo para trabalhar de graça no final!"

Passado o estranhamento inicial, percebemos que é só uma voluntária antiga, numa cena criada para fazer troça com o rigor da longa seleção.

Brincadeira à parte, o fato é que ela tem razão. O que, afinal, reúne ali aquelas 200 pessoas, que poderiam estar dormindo, brincando com os filhos, fazendo uma pós? O que me faz acordar cedo num sábado de sol sem plantão para ver uma palestra sobre a morte -em pleno Dia dos Namorados?

Agora que estou no fim da maratona, arrisco um balanço. Não dá para negar que o sono que senti, um certo terrorismo com as faltas e algumas dinâmicas sentimentais demais me fizeram pensar o que, afinal, eu fazia ali.

Mas também tive lições valiosas. E se uma criança pedir água? Penso: daria! Pois um voluntário que fez isso atrapalhou o jejum para um exame. Se ela quiser saber sobre a doença? Não, o papel é dos médicos. E se não quiser histórias? Vi que, às voltas com injeções e cirurgias urgentes, é o único "não" que ela pode dar, e merece respeito. É. Não basta aceitar um "exército de bonzinhos" que não saiba lidar com situações tão delicadas.

Sim, o treino é longo. Mas perdi um pouco da timidez, conheci obras de arte da literatura infantil, saí da rotina. O processo teve também um (bom) efeito colateral: manter a persistência. Entrar na ala infantil de um hospital de câncer pode ser assustador. O receio de falhar vira mesmo vontade de desistir. Não há curso que prepare para isso, mas aí penso: "Estou há um ano nessa para nada? Vou tentar mais". Sigo tentando. E, por enquanto, estou gostando da experiência.

Ajuda consciente

SE VOCÊ QUER AJUDAR...

Pense no que quer fazer: há quem prefira tarefas relacionadas à sua profissão ou algo diferente. O importante é ter prazer.

Leve em conta suas habilidades. De nada adianta ajudar numa oficina de artes se você não tem nenhum talento para a área.

Pense no público com o qual quer atuar. Se não se sentir preparado para interagir com crianças doentes ou moradores de rua, por exemplo, proponha um trabalho administrativo.

Calcule de quanto tempo dispõe. Algumas ONGs exigem uma periodicidade fixa, enquanto outras têm ações mais pontuais.

Em São Paulo, é fundamental levar em conta o deslocamento até a ONG. Se for muito longo, pode desestimular o trabalho.

Se não puder ir até o local, tente um trabalho a distância. Muitas organizações oferecem essa possibilidade.

SE VOCÊ JÁ É VOLUNTÁRIO...

Seja constante. Se precisar faltar, avise com antecedência.

Não abandone o trabalho sem avisar aos responsáveis pela ONG. Se tiver algum problema, converse com eles antes de desistir.

Se a ONG oferecer cursos de reciclagem para voluntários, tente comparecer.

Centro de Voluntariado de São Paulo - tel. 0/xx/11/3284-7171 - www.voluntariado.org.br

 

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