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08/01/2012 - 12h20

Maria Berenice Dias foi pioneira em defender direitos gays

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CHICO FELITTI
DE PORTO ALEGRE

No seu primeiro dia como magistrada, em 1973, Maria Berenice Dias precisou dar uma passadinha no banheiro. Optou ao acaso por um dos dois WCs da vara onde dava expediente e, enquanto cuidava da fisiologia, foi interrompida por um colega homem. Apertado, ele entrou sem bater na porta, que não tinha tranca.

Foi o suficiente para sair do toalete reivindicando um banheiro somente para mulheres. Ou, no caso, para a primeira mulher que o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul admitiu na magistratura.

Quando fez a reclamação, em voz alta, ouviu de um colega: "Mas nós somos 68 homens e vamos ter só um banheiro, enquanto você, sozinha, quer ter um seu?". Respondeu: "Sim, vou ter o meu banheiro". Foi a primeira defesa de minoria que a advogada gaúcha sustentou em 63 anos de vida. E ganhou.

Comprou briga maior na carreira jurídica: a de que dois homens ou duas mulheres também tivessem o direito de se casar e de formar uma família.

"Eu nem sabia bem o que estava fazendo, mas ia fazendo", diz a advogada e desembargadora aposentada na varanda do apartamento dúplex em que mora, em Porto Alegre. Enquanto o tom da fala é constante, gesticula com as mãos congestionadas de anéis de ouro.

As paredes são cheias de fotos suas (uma em tamanho natural), uma indicação a prêmio da ONU e recortes de matérias sobre ela, que saíram nas quase quatro décadas em que advoga pela igualdade.

Trinta e cinco anos depois da tomada do banheiro, Maria Berenice defenderia outra minoria em frente à corte mais alta do país, o Supremo Tribunal Federal. O julgamento, em 5 de maio do ano passado, decidiria se duas pessoas do mesmo sexo poderiam constituir família.

Depois de citar o nome de Berenice 19 vezes, o tribunal deu seu veredicto: a união de homossexuais é igual à união civil estável de heterossexuais. Esse acordo difere do casamento em alguns itens: não é possível a mudança do estado civil de "solteiro" para "casado" e não há garantia de que o cônjuge terá direito à herança.

Até então, o direito de união estável gay já era reconhecido em alguns Estados, mesmo sem resolução de órgão federal. O primeiro deles foi o Rio Grande do Sul. Em parte por decisões da desembargadora gaúcha, que, em 2000, publicou o primeiro livro a falar em direito "homoafetivo".

"HOMO" O QUÊ?

O termo, que substitui a palavra "homossexual", levou a algumas críticas. "Ela é uma figura muito importante na luta pelos direitos gays", diz o ativista paulista Aurélio Martins. "Mas talvez ceda demais em, por exemplo, falar 'união homoafetiva'. Esse termo tirou o sexo da palavra só para nos tornar, os homossexuais, menos ameaçadores. Não precisamos ser amainados."

Os dois concordam em um ponto: que a minoria precisa, sim, de proteção legal.

"Acho difícil que a lei anti-homofobia seja aprovada", diz Berenice, referindo-se ao projeto de lei da Câmara 122, que criminaliza o preconceito contra homossexual e, há cinco anos, patina no Congresso. "Nada passa pelo nosso legislador. É medo de ser taxado de homossexual, medo de não ser reeleito."

Ela mesma ouve várias vezes insinuações de que advoga em causa própria. "Fui casada cinco vezes. Todas com homens. E ainda há quem diga que eu sou lésbica", ri Berenice. "Quantos homens mais tenho de ter para me provar?"

CAPELA GAY

Outra fofoca sobre ela correu o Brasil. Diziam que tinha se aposentado e aberto uma firma de advocacia com "uma capelinha de casar gay" dentro. Ela de fato chamou duas ex-funcionárias para abrir um escritório de direito de família em Porto Alegre.

Como já tinha fama de casamenteira gay, decidiu se deitar nessa cama e fazer celebrações dos pedidos de registro civil de união estável. "Organizo uma festa bonitinha. Boto toalhinha de renda, velas. Se quiser trazer alianças, traga sim."

Como padres não costumam querer abençoar casais de dois Adãos ou duas Evas, acaba sobrando certa liturgia a ela. "Falo umas palavras, mas sem muito discurso."

Além da assessoria jurídica a futuros casais ("Uns 20% da clientela"), Berenice presta outros auxílios. Ajuda a lidar com pais desgostosos. Indica médicos para cirurgia de mudança de sexo. Dá até um pouco de ombro.

"A união é um momento feliz e triste ao mesmo tempo. Muitos casam sem ninguém da família presente à cerimônia", diz durante um almoço no bairro Moinhos de Vento, sede de sua empresa.

Enquanto toma café, ouve de uma advogada de sua equipe que um casal que elas uniram se separou. Sem revelar se eram dois homens, duas mulheres ou um de cada tipo, diz num suspiro: "Ai, famílias. Elas vão ser sempre famílias, né?"

*

Igual, mas diferente

Passo a passo do casamento gay no Brasil:

1996
Justiça do Rio Grande do Sul aprova inclusão de parceiro do mesmo sexo como dependente em planos de saúde.

2000
Estados brasileiros concedem pensão a gays viúvos.

2006
Justiça brasileira autoriza a primeira adoção por um casal homossexual.

5 de maio de 2011
O Supremo Tribunal Federal julga que a união de homossexuais é igual à relação estável heterossexual.

25 de outubro de 2011
O Supremo Tribunal de Justiça autoriza o casamento gay de duas mulheres. É a primeira vez que isso acontece em um tribunal superior. A decisão servirá como orientação para juízes de todo o país.

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