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Serafina

Perto de completar 100 anos, Tomie Ohtake relembra seis décadas de carreira

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Ela pede para não fotografar os seus novos trabalhos. Aos 99 anos, completados em 21 de novembro, Tomie Ohtake continua trabalhando. Avançando para dentro da casa dela, um lar modernista construído há 44 anos pelo filho, o arquiteto Ruy Ohtake, 75, a curiosidade é o nosso guia.

Ao chegar ao estúdio em que Tomie trabalha três vezes por semana, das dez da manhã até o final da tarde, a impressão é a de se estar entrando numa capela zen. Não existem capelas desse tipo, nem mesmo o zen é uma religião. Mas há um certo misticismo no ar, aquele que a arte libera na casa de alguns artistas.

Aliás, é preciso parar um pouco por aqui. Que lugar é esse? A casa de Tomie fica numa rua discreta do Campo Belo, na zona sul de São Paulo. É feita de concreto, e o cinza do material é perfeito para receber, por contraste, as cores do mundo da artista (que ganha, a partir de 6 de fevereiro, a primeira das três exposições do Instituto Tomie Ohtake para comemorar seu centenário).

Cada coisa ali dentro merece um minuto de contemplação: os 40 anos da construção estão conservados nas paredes e nos móveis, nas cadeiras de design avançado do italiano Harry Bertoia, nos vasos redondos da ceramista nipo-brasileira Kimi Nii, nos retratos em que Tomie aparece jovem, moderna, alegre, ao lado de

Pietro Maria Bardi, nos arquivos em aço, cor de mostarda, da tradicional marca Fiel, na parede sinuosa de mosaico azul que percorre o jardim interior. Ruy caprichou.

Nada ali, porém, é mais bonito do que o ateliê, em que uma claraboia de vidro (um vidro especial que deu um tremendo trabalho ao vidraceiro) em forma de dirigível alcança a proeza de iluminar o interior com mais intensidade do que o sol que brilha lá fora.

Os detalhes ali são ainda mais magnéticos, mas Tomie está sentada numa cadeira de rodas e sorri. Ela parece igual ao que sempre foi. Podemos chamar isso de estilo corporal. O cabelo até o pescoço rigorosamente pintado de preto. Os óculos de aro preto, que são a sua marca. O relógio de pulso minimalista, sem ponteiros, de pulseira preta. A roupa, um cardigã sobre uma camiseta, a calça e os chinelos confortáveis –tudo, tudo preto.

Há mais de 30 anos, ela alterna o preto e o branco no guarda-roupa, deixando as cores para os seus quadros. É uma mulher muito elegante no seu minimalismo. "É mais fácil na hora de escolher", ela diz, simplificando. "Não precisa ficar pensando. E a camiseta Hering é boa para trabalhar."

Tomie diz tudo isso no seu português carregado de sotaque japonês, que os 76 anos de Brasil conseguiram melhorar. Lúcida, ela pesca as palavras. Quando não consegue encontrá-las, recorre a Marcy, mulher do outro filho, o também arquiteto, designer e ex-secretário de diversas pastas públicas Ricardo Ohtake, 69.

AZUL

Ela pede para não fotografar os novos trabalhos porque eles ainda são uma obra em progresso. Alinhadas na parede em frente, estão oito telas azuis de tamanhos variados. "Não dou nome às obras. Prefiro que a pessoa interprete. É um tipo de pensamento puro." Mas ela tem o conceito.

"Eu estava procurando profundidade nesses aí, uma transparência. Queria saber como é a luz que vem de trás." Ela acrescenta que esses quadros novos em folha não são só azuis. "Misturei com um pouco de roxo. Com o roxo, fica mais quente." E não há preto neles. Ela explica isso batendo o indicador na mesa.

Os críticos dizem que a pincelada é a chave dos seus quadros. Para quem não é do ramo, mas aprecia a arte japonesa, seus gestos parecem ter achado um caminho entre as formas de teatro nô e kabuki.

Aquele conjunto da parede é uma obra em progresso porque, assim que se muda a perspectiva, dá para notar mais um agrupamento de telas notáveis, junto do chão, em pleno andamento. São mais quatro, verdes, amarelas e azuis, em tamanhos variados, grandes e pequenas. Vistas de muito perto, não oferecem as relevâncias características do óleo, pois são feitas em tinta acrílica –há muitos anos, Tomie abandonou o óleo, assim como ficaram ainda mais distantes as aquarelas do começo da carreira.

A vida de artista só começou por volta dos 40 anos, em 1952. Até então, Tomie havia se dedicado à criação dos filhos. Ela aportou no Brasil em 1936, vinda de Kyoto, onde nasceu, para passar um ano com um de seus quatro irmãos (é a caçula e a única mulher).

O que era para durar um ano vingou para sempre. O irmão foi convocado para a guerra do Japão contra a China, iniciada em 1937, e morreu em combate. Os navios foram impedidos de chegar ao Japão, e Tomie, já apaixonada por um amigo do irmão, o engenheiro-agrônomo japonês Ushio Ohtake, acabou se casando e ficando por aqui.

"Ele era bonito. Meu filho Ruy, quando jovem, tinha a cara dele." O casamento durou até a morte de Ushio, em 1976.

SIMPLICIDADE

Já a pintura ficou adormecida até o início dos anos 1950, quando ela levou uma dura do artista plástico japonês Keiya Sugano, de passagem pelo Brasil.

Tomie havia estudado pintura apenas como parte do currículo escolar. Mas, ao descobrir que ela tinha talento e vontade, Keiya mandou essa: "Começa agora, hoje mesmo! Criança cresce sozinha".

E foi o que fez, retomando as aquarelas do tempo de menina e, depois, passando para as coisas mais abstratas.

Ludovic Carèmec
Retrato de Tomie Ohtake; uma das maiores pintoras do Brasil está prestes a completar 100 anos
Retrato de Tomie Ohtake; uma das maiores pintoras do Brasil que está prestes a completar 100 anos

Isso sem nunca deixar de prestar atenção à criação dos filhos. Morando na Mooca, na zona leste de SP, Tomie integrou os meninos de forma surpreendente. "É um país de católicos? Pois meus filhos serão católicos", determinou.

Ruy e Ricardo estudaram no tradicional colégio Dom Bosco e foram coroinhas. "Hoje, fogem da missa", acrescenta, não sendo ela mesma muito religiosa –nem católica nem budista.

Talvez sua religião seja a simplicidade: nas cores, nas curvas e círculos que sua arte revela, nas roupas que usa, até mesmo no ateliê, espetáculo à parte, que ela chama de "bagunça". Mas que está mais próximo de um cômodo japonês, onde tudo parece em ordem, com objetos organizados por afinidade (insetos feitos de chumbo, livros de arte do escultor contemporâneo Richard Serra e do pintor russo naturalizado americano Mark

Rothko, vasos com formas que lembram pinturas do italiano Giorgio Morandi etc.).

"MAMMA" JAPONESA

Artista das cores, Tomie não tem nenhuma favorita, embora o vermelho, o azul e o amarelo predominem. "Todas as cores são bonitas, mas elas ficam ainda mais bonitas quando combinadas. Um azul forte com um azul mais fraco, por exemplo."

Quem ajuda na trabalheira do estúdio é outro artista, o japonês Futoshi Yoshizawa, de Saitana, uma província de Tóquio. Futoshi, 48, já auxilia Tomie há 14 anos. "Ele sofre", ela conta, pois é uma mulher exigente. Ela explica para ele a força e a leveza necessárias para uma pincelada de Tomie Ohtake. Isso porque, em alguns quadros maiores, é ele quem efetivamente maneja o pincel, sob as ordens da pintora.

Se não tivesse nascido japonesa, Tomie poderia muito bem ter sido uma "mamma" italiana. A Mooca lhe deu os primeiros amigos, o gosto pelas massas ("Adoro macarrão!") e a mania de juntar toda a família em torno da mesa aos domingos.

Ela gosta de dizer que morava numa casa abstrata, em Kyoto, de tão simples. De lá, ela trouxe essa marca, mas foi aqui que fez os grandes amigos –e eles são muitos.

Na parede atrás de nós, repousam alguns desses vestígios. Ali, convivem na mais absoluta harmonia obras de Yoko Ono dedicadas a ela e outras de pessoas bem menos conhecidas, mas não menos queridas.

Há também uma camisa número nove da seleção, com o nome de Tomie, presente gaiato do amigo Ayao Okamoto, professor da PUC.

A artista acredita que o trabalho permanente pode explicar sua longa vida. "Além da família e dos amigos", completa ela, "nesta casa, que é o melhor lugar do mundo".

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