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Serafina

Leonard Cohen, o ídolo com fãs zen, prepara novo álbum e planeja tocar no Brasil

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Leonard Cohen tinha dois shows marcados em Dublin, capital da Irlanda, e a cidade toda parecia estar influenciada por sua presença. Era como esses filmes em que alienígenas se apossam dos habitantes.

Achei que a qualquer momento passaria uma fila de crianças cantando "Hallelujah", talvez sua canção mais marcante. Berço de escritores, poetas e dramaturgos importantes como James Joyce (1882-1941), W. B. Yeats (1865-1939), Oscar Wilde (1854-1900) e Samuel Beckett (1906-1989), entre outros, Dublin parece exalar literatura, e talvez essa seja a explicação para tanta intimidade com o bardo canadense.

Logo no primeiro táxi que tomei, o motorista começou a reger com a mão e cantar "Suzanne", outra de suas músicas mais famosas. Enquanto bebia uma Guinness no pub que Joyce frequentava, o The Bailey, ouvi duas garçonetes falarem sobre os shows daquela semana, na O2, grande casa de espetáculos. Até a recepcionista do hotel ficou encantada quando eu disse que viera só para isso.

Não havia combinado nada, mas queria tentar entrevistá-lo. Teria de ser no improviso, como um solo arriscado de jazz. Ou no grito. Desconfiava que ele simpatizaria com a ideia de falar com alguém que viera de tão longe. A cidade parecia querer ajudar. E eu estava bem preparado.

PRETÉRITO IMPERFEITO

Nascido em Montreal, em 1934, de uma família de classe média alta, Cohen é o mais literário dos cantores/compositores, até porque começou a carreira como escritor premiado -lançou o primeiro livro de poemas, "Let Us Compare Mythologies" ("Vamos Comparar Mitologias", em tradução livre), em 1956, aos 21 anos. Talentoso e original, era também franco em seus objetivos: "Eu escrevia poemas para despertar o interesse das mulheres".

Em 1966 publicou seu segundo romance, o erótico e experimental "Beautiful Losers" (que terá tradução para o português em 2014, pela Cosac Naify). Um crítico chegou a dizer que era o encontro entre Joyce (ele de novo!) e o americano Henry Miller (1891-1980). "Uma versão mais inteligente de 'Naked Lunch', do William S. Burroughs (1914-1997)", arriscou outro.

Fazia turnês de leitura de seus poemas pelos EUA e Canadá, às vezes com o apoio de uma banda de jazz, o que lhe deu experiência de palco. Um documentário feito em 1965, "Ladies and Gentlemen...Mr. Leonard Cohen", dirigido em preto e branco por Donald Brittain e Don Owen mostra ele aos 30 anos, lendo poemas e histórias para uma plateia entusiasmada, andando por Montreal e até tomando banho (é fácil de achar na rede).

Como os livros rendiam boas críticas mas não pagavam as contas, resolveu tentar a sorte como cantor folk. Era algo de que realmente gostava, afinal. Depois de um período circulando com a turma da Factory de Andy Warhol em Nova York (Lou Reed era fã de seus livros) conseguiu um contrato e gravou o primeiro disco, "Songs of Leonard Cohen", em 1967, aos 33 anos. De lá para cá passaram-se 46 anos, período em que gravou apenas outros 11 discos.

Hoje ele não é mais o belo trovador que, no final dos anos 1970 e começo dos 1980, deprimido com a separação da artista Suzanne Elrod, mãe de seus filhos Adam, 35, e Lorca, 33, tomava quatro garrafas de vinho por dia, se entupia de sedativos e seduzia várias mulheres. Nem o jovem autor que, nos anos 1960, se refugiou numa casa em Hidra, uma ilha grega, onde escrevia enquanto viajava de ácido ao som de Ray Charles. Menos ainda o gênio depressivo que buscou a paz num mosteiro. Durante a fase zen, na Califórnia, ficou por cinco anos, a partir de 1994, servindo como cozinheiro, motorista e parceiro de bebidas de seu mestre, Roshi.

Perto dos 80, parece um homem que conseguiu reconciliar as contradições, prazeres e angústias de seu passado e fazer deles uma fonte de energia. Atingiu uma rara e nada burra unanimidade. Há quem sustente que é o melhor letrista da história da música pop/rock/folk.

Seu estilo de tocar violão, um dedilhado meio flamenco, meio grego, o diferencia dos demais. Por fim, a voz. No início nasalada, triste, irônica; de uns anos para cá, tornou-se um sussurro rouco, com uma autoridade grave e sensual, como se estivesse ao lado do ouvinte. Atualmente ele mora numa casa em Los Angeles com a filha, batizada em homenagem a seu poeta favorito, o espanhol Federico García Lorca (1898-1936), e a neta Viva Katherine, 2, filha dela com o cantor Rufus Wainwright.

A uma quadra de distância, vive sua parceira, a também cantora e compositora americana Anjani Thomas, 54.

Como o pai era um fabricante de roupas bem-sucedido, ele brinca que já nasceu vestindo terno. Só que agora acrescido de um inseparável chapéu Fedora.

AO VIVO

É assim que entra no palco em Dublin, diante de 8.000 pessoas aplaudindo de pé. A diferença de idade entre seus fãs é notável. Alguns beiram os 20 e posso jurar que vi uma senhora de 90. A média está entre os 30 e os 50. Ainda que nunca tenha sido famoso como seu "rival", Bob Dylan (na verdade são amigos e se admiram mutuamente), Cohen talvez seja o artista mais silenciosamente cultuado do mundo. Ele não desperta fanatismo, mas uma adoração íntima, como um segredo bem guardado.

Está em seu melhor momento. O álbum "Old Ideas", do ano passado, entrou direto no topo da parada em nove países. As turnês de 2008/2010, 2012 e a atual vêm lotando todos os lugares por onde passa. E tudo isso começou por causa de um roubo fabuloso. Voltando de seu tempo de reclusão zen, descobriu que Kelley Lynch, sua empresária por 17 anos e eventual amante, havia zerado sua conta no banco. Mais de cinco milhões de dólares sumiram. Ele a demitiu imediatamente e a processou. No ano passado, depois de várias ameaças a Cohen e sua família, ela foi presa e condenada a 18 meses numa penitenciária.

A necessidade foi a mãe da nova situação. Logo no primeiro ano de shows, 2008, o rombo foi coberto com sobras, as críticas foram unânimes e o público afluiu com um entusiasmo que parecia acumulado ao longo dos tempos.

Cohen faz por merecer. Os shows duram três horas e meia, e a qualidade das músicas e dos músicos é excepcional, mas o que emociona mesmo é a disposição daquele senhor elegante, que faz as ideias e os sentimentos mais complexos parecerem simples. A ordem das músicas segue uma narrativa, percorrendo todas suas fases, mas com doses de humor. Não faltam os clássicos mencionados anteriormente e ainda "I'm your Man", possivelmente a melhor cantada em forma de canção já feita, "So long, Marianne", sobre sua primeira relação duradoura e a crítica arrasadora ao mundo atual, "The Future".

Consegui ficar bem perto do palco, junto aos fotógrafos, e pude observá-lo (e à banda) em cada detalhe. Seus gestos seriam teatrais, não fossem tão sinceros: ora ergue o punho, enfatizando cada sílaba das letras, ora ajoelha-se para se entregar ao sentimento das canções. Tira o chapéu e o coloca no peito para ouvir os solos de seus músicos. E faz piadas (depois de um intervalo de vinte minutos, ele volta, olha para a plateia e comenta: "Que bom que vocês continuam aí. Fiquei com receio de que tivessem ido embora").

O público acompanha, cantando baixinho a maior parte das músicas. Não há histeria, mas uma comunhão prazerosa. Na juventude, como descreve em seu livro "A Brincadeira Favorita" (E. Cosac Naify), aprendeu a hipnotizar. É o que parece fazer, do palco, com os fãs, com os músicos, consigo mesmo. Sacro e profano, irônico e lírico, alegre e melancólico, é santo e sátiro ao mesmo tempo, com todas as gradações possíveis entre esses polos.

SATISFAÇÃO GARANTIDA

Cohen volta seis, sete vezes ao palco, sempre dançando, com ar genuinamente feliz. Canta "I tried to leave you" (Tentei te deixar), de um de seus melhores álbuns, "New Skin for the Old
Ceremony", de 1974, e enfatiza o verso "I hope you're satisfied" (espero que estejam satisfeitos), seguido de suspiros e risadas da plateia. Para o ponto final da narrativa, Cohen e banda tocam "Closing Time" (hora de fechar), do disco "The Future", de 1992. Perfeito. Sim, todos estão satisfeitos.

Entrei no camarim com um crachá da equipe de montagem, que ganhei de uma loira na saída do palco. Lá dentro, a atmosfera diferia muito de outros camarins que conheci: nada de gritos, correrias ou ordens grosseiras. Conversei com integrantes da banda, roadies, seguranças. Todos disseram a mesma coisa, da petite Charley Webb, das Webb Sisters, que fazem o coro, a Simon, o careca que carregava um amplificador após o show: "nunca trabalhei num ambiente tão tranquilo e com alguém tão gentil. E além de tudo ele é muito engraçado". Um exemplo do seu senso de humor: quando um jornalista comentou que suas letras eram muito depressivas, ele respondeu: "é, acho que meus discos deveriam vir com giletes encartadas". Na mesma linha, disse também: "Suicídio? Não faz meu gênero".

No lobby do hotel em que ele e a banda estavam hospedados, um edifício antigo, não especialmente luxuoso, uma fã me conta que, em 2010, quando veio tocar na cidade pela terceira vez,
Cohen dormiu no quarto que foi de Yeats, um de seus ídolos. O músico não aparece, preferiu guardar as energias para o segundo show que o aguardava, na noite seguinte. Fala apenas com Michael Higgins, presidente da Irlanda, e Gerry Adams, presidente do Sinn Féin, o braço político do IRA. Segundo o responsável pela contabilidade da turnê, Wade Perry, toda vez que passam por Dublin, Bono, do U2, compra de cem a 200 ingressos e tenta falar com Cohen, sem sucesso. Eles chegaram a tocar juntos no documentário"I'm your man", de 2005. "Leonard é avesso a compromissos. É mais fácil falar com ele se o encontrar por acaso. Aí pode conversar com você por horas."

No segundo show aproveitei para prestar mais atenção a Sharon Robinson, 55, cantora de voz sensual e compositora de talento. Outro destaque é Javier Mas, violonista de flamenco que dá um toque exótico ao espetáculo (além do violinista moldavo Alexandru Bublitchi). No camarim, Mas me conta que já tocou e excursionou com Milton Nascimento e o grupo Uakti. Conheceu Cohen no ano passado, quando montou na Espanha o disco-tributo "According to Leonard Cohen", com músicas do canadense cantadas em espanhol ou catalão. O homenageado ficou tão bem impressionado que o chamou para sua banda.

Ainda no hotel, Roscoe Beck, o baixista e maestro da banda, e Mitch Atkins, o guitarrista, comentaram sobre a diferença dessa turnê e da série de shows que fizeram em 1979/80 e que estão no disco ao vivo "Field Commander Cohen": "Naquela época era uma loucura. Bebidas, drogas, mulheres. A música era mais improvisada, cada show era diferente. Agora é mais tranquilo. Prefiro agora", diz Mitch, com um sorriso. Ele, Beck e Más confirmam que Cohen prepara um disco novo: "às vezes ele chega com um tema no ensaio e tocamos por 45 minutos, até chegar no ponto. É uma das coisas que aprendi com ele: o valor da repetição, que remete à música árabe", diz Más. Nos shows ele tem arriscado uma das músicas novas, "I've Got a Secret", um blues quase tradicional, que canta com entusiasmo juvenil. Até o final do ano, a partir de novembro, a turnê passa ainda pela Austrália e Nova Zelândia. Beck revela que querem muito vir ao Brasil, mas não sabem se será possível: "Falamos sempre em ir à América do Sul e África, continentes aos quais nunca fomos. E o Brasil é sempre mencionado com interesse especial. Quem sabe?".

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