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Autor de 'Pornopopéia', Reinaldo Moraes narra andanças por São Paulo

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A incumbência de falar sobre a cidade onde nasci e vivo há seis décadas, tirando uns tempinhos que passei na Europa, me parece de uma complexidade tão avassaladora quanto seria a de traçar um rápido perfil do cosmo inumerável, desde o Big Bang até os dias de hoje. Missão impossível, eu diria. E, já que é impossível, relaxo, ligo o foda-se e vamo lá.

Nessas seis décadas (e meia, mas não espalha), já morei em muitos bairros, como a Bela Vista, na infância (anos 1950). Era uma vizinhança de classe média BB (bem baixa), com terrenos baldios futebolísticos e uma molecada de rua animada e animosa que não deixava espaço para o tédio. Um desses moleques era um filho de imigrantes italianos que comia cebola no lanche da tarde. Minha mãe não deixava o garoto entrar em casa por causa do mau hálito dele e por uma desconfiança classista de gente que come cebola crua.

Depois de uma breve passagem pela Aclimação, fui parar num sobradinho geminado do Butantã. Ficava numa rua colada aos fundos do Jóquei Clube e não longe, de bicicleta, dos répteis e artrópodes peçonhentos do Instituto Butantan, e também do campus da USP, ainda em construção na época.

O Jóquei, com seus cavalos e cavalariços vindos de toda parte equestre do país, o adorável parque do Instituto Butantan e a área da USP eram pra mim como o quintal de casa, onde eu pedalava incansavelmente com a turma da rua. Na USP cheguei a fazer, mais tarde, três anos de ciências sociais e um de jornalismo, na ECA, nos ditatoriais anos 1970. Confesso que gostei mais da época em que só andava de bicicleta por lá.

Outro playground mais à mão ficava atrás da minha rua, à beira do fedegoso rio Pinheiros, onde hoje passam as pistas da marginal. Tinha ali uma "minijungle" de pés de mamona cujas bagas serviam de munição letal pros nossos estilingues, e um campinho de futebol de terra, palco de rudes refregas ludopédicas das quais ainda trago lembranças epidérmicas nas pernas e canelas.

De vez em quando a bola caía no rio, obrigando-nos a uma vaquinha pra pagar um beleléu que vivia por ali e entrava sem cerimônia nas águas poluidíssimas pra resgatar a bola com um pedaço de pau. É bem verdade que ele não saía de lá muito mais sujo do que tinha entrado.

Já morei também em Higienópolis, no começo dos anos 1980. No bairro chique, com senhôras de cabelo azul passeando seus poodles e yorkshire terriers pelas calçadas, eu dividia um amplo apartamento com uma amiga e um amigo. Pra nossa incrível sorte, o aluguel, naqueles anos hiperinflacionados, permaneceu congelado por conta de uma pendenga judicial entre os herdeiros do imóvel, e já ao fim do primeiro ano valia menos que uma conta de bar.

Morei também em Pinheiros, Vila Madalena e Jardim Paulista. Nesse último bairro, sentei praça em meio a exemplares humanos da "baixa alta classe média," termo irônico que o George Orwell cunhou num ensaio biográfico-jornalístico, "O Caminho para Wigan Pier" (Companhia das Letras), ao referir-se à sua própria extração social.

Toda a classe média britânica que Orwell conheceu no início do século 20 era, em suas palavras, "uma espécie de montículo de destroços deixados para trás quando baixou a maré de prosperidade vitoriana". O mesmo devia valer pros meus vizinhos, se a gente trocar a referência à era vitoriana pelo chamado milagre brasileiro, que durou de 1968 a 1973, marco da primeira crise do petróleo. Foi a época, aliás, de um ruidoso boom imobiliário na cidade, expressão mais notória daquela fugaz prosperidade.

Na periferia nunca morei, mas já cruzei a pé muitos de seus bairros. Isso, em 2003, na companhia do fotógrafo Roberto Linsker, quando caminhamos desde Marsilac, o distrito mais ao sul, com vaquinhas devorando a paisagem rural, até o túnel da Mata Fria, no alto da Cantareira, extremo norte da cidade.

Foram 90 km a pé, mochila nas costas, durante sete dias, com pouca grana no bolso. A gente dormia em pulgueiros de passe, com o entra e sai incessante dos buliçosos copuladores a noite inteira. Durante o dia, restaurávamos nossas forças com pê-efes de botequim. Mas tivemos alguns luxos. Em Parelheiros, por exemplo, morto de fome e cansaço, devorei, grato aos céus, a pior e mais bem-vinda pizza da minha vida.

Foi uma tremenda imersão numa cidade oculta dentro da minha. O Linsker ia na frente com sua antiga Nikon analógica, eu seguia atrás, de ciático esmagado, engolindo meus gemidos, com um velho gravadorzinho Sony também analógico na mão a entrevistar impiedosamente quem cruzasse nosso caminho.

Nosso critério pra escolher os entrevistados era só um: o homem ou a mulher tinha que estar na rua, ou visível desde a rua, de preferência fazendo alguma coisa. O resultado dessa jornada algo insana virou um livro de fotos (do Linsker) com um extenso relato de viagem (escrito por mim), intitulado "Estrangeiros em Casa - Uma Caminhada pela Selva Urbana de São Paulo", publicado em 2004, ano em que São Paulo fazia 450 anos, com o selo da revista "National Geographic".

Mesmo atravessando quebradas cujos índices de violência e criminalidade batem recordes sucessivos, ano a ano, não tivemos que encarar nenhuma treta braba na aventura, que mais de um paulistano de classe média não hesitaria em classificar de "programa de índio".

Aliás, índios de verdade não faltaram no nosso trajeto, pois conseguimos entrar na aldeia guarani Tenondé Porã, em Parelheiros, zona sul, num domingo frio e chuvoso, com toda a tribo entocada em míseros casebres assistindo a Silvio Santos e Faustão na TV -juro!

Ali, numa área do tamanho de um sítio pequeno, fiz uma das perguntas mais cretinas da viagem, endereçada ao cacique Timóteo, ou Verá Popyguá, em guarani: "Há quanto tempo vocês estão nessa área?" O cacique respondeu de bate-pronto: "Há milhares de anos", passando uma rasteira na intenção da minha pergunta, de alcance bem mais limitado.

E acrescentou: "Guarani ocupava toda a área litorânea, do Uruguai até o Espírito Santo. Ajudamos a construir esta cidade, a começar pelo Pateo do
Collegio. Os guaranis estavam sempre de passagem aqui pelo planalto".

Outra pergunta cretina eu faria às vésperas do fim da nossa viagem. Galgávamos, o Roberto Linsker e eu, uma das ladeiras da av. coronel Sezefredo Fagundes, que sobe do Tucuruvi para o Tremembé, no outro extremo da cidade, o norte, quando topamos, numa obra aberta pra rua, com um soldador fazendo reparos numa broca perfuratriz.

De máscara protetora levantada sobre a cabeça, ele contou que já sofrera assaltos e que, a seu ver, o principal problema da cidade era a violência. Foi aí que eu lasquei a pérola: "Mesmo já tendo sido assaltado, você acredita que tem mais gente boa que ruim nesta cidade?"

O soldador me olhou com certa impaciência, disse um curto "com certeza", abaixou a máscara e voltou a soltar faísca com a solda. Roberto não me perdoou: "Claro que tem muito mais gente boa que ruim na cidade, mané. Se fosse o contrário, já estaríamos mortos".

Apesar das profundas desigualdades sociais entre os 96 distritos e da enxurrada de problemas urbanos que nos afetam, do transporte à moradia, passando pela precária segurança, saí da aventura com a impressão reforçada de que São Paulo, a par de ser uma cidade muito grande, é e sempre será uma grande cidade, do mesmo jeito que Paris, Londres e Nova York são grandes cidades.

O escritor americano Edmund White, em seu delicioso "O Flâneur - Um Passeio pelos Paradoxos de Paris" (Companhia das Letras, traduzido por mim), cita uma definição que um amigo dele, chegado num agito, dá sobre o que vem a ser uma grande cidade: "É um lugar onde tem negros, prédios altos e você pode ficar na rua a noite toda".

É nóis, mano!

Reinaldo Moraes, 65, escritor paulistano, é autor de "Pornopopéia" (2009)

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