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Serafina

Colunista conta como perdeu a intimidade com seu amigo Panda

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Éramos uma dupla inseparável. Viajávamos juntos pela África e Europa escrevendo roteiros, fazendo filmes e dando muitas risadas.

Em nosso grupo de amigos, nós o apelidamos de Urso Panda porque ele nunca namorava ou transava com ninguém.

Dizíamos que só quando encontrássemos um tipo muito especial de folhas de bambu —daquelas que só crescem nas encostas das montanhas do noroeste da China- conseguiríamos fazer com que o Pandinha se acasalasse com uma fêmea de sua espécie.

Com o seu maravilhoso humor autodepreciativo judaico-britânico, ele não perdia oportunidade de se oferecer como objeto de nossas brincadeiras. Uma vez, em Roma, para testar os limites da sua "pandice crônica", paguei para uma linda garota de programa se enfiar em sua cama no meio da noite. Não sei o que rolou, mas como ele achou a maior graça, nunca mais pensei no assunto.

Logo após essa viagem, ele sumiu. Ficou reticente ao telefone, evasivo e distante no trabalho. Um tempo depois, me procurou. Queria conversar seriamente. Nos encontramos em um café em Covent Garden, em Londres, e ele estava tenso e estranho. Respirou fundo e disse ter descoberto que era homossexual e que eu era a primeira pessoa a saber.

Ilustração de Caco Neves
Goldman - meu amigo panda - Zooropa por Henrique Goldman - Uma amizade dissolvida pelas diferenças e ao acaso de um reencontro no metrô de londres 15 anos depois#serafina92

Não me choquei nem um pouco. Já tinha começado a suspeitar e era claro que aquela descoberta era um alívio. Ele perguntou se eu achava que nossa amizade iria mudar. Disse que o amava, que fiquei muito honrado por ser o primeiro a saber e que sua orientação sexual não me incomodava.

Era como se ele tivesse virado vegetariano. Seus olhos lacrimejaram.

Dei nele um beijo sincero e emocionado. E, para fazê-lo rir, avisei logo que ia chamá-lo de "fucking faggot" (uma espécie de bicha louca) quando quisesse e que nunca mais iria com ele à sauna.

Segui de perto as enormes dificuldades que ele encontrou para se assumir com os pais e com o mundo, muitas vezes ignorante e preconceituoso.

Mas, pouco a pouco, o plácido Pandinha virou uma onça feroz. Começou a malhar na academia, tingiu o cabelo de ruivo e a cada dia caçava uma presa diferente na selva do Soho. Ficou totalmente obcecado com a nova vida.

Com o tempo, fiquei enjoado com o relato monocórdico do que para ele eram grandes aventuras. Eu estava me casando, pensava em ter filhos. Sei que ele também começou a me achar chato e convencional. Uma vez saí para jantar com ele e um namorado, um calista curdo. Ficamos bêbados e o rapaz começou a insistir para que fizéssemos um trenzinho. Expliquei que não sentia tesão por homens. O curdo começou a insistir com aquela condescendência típica de quem pensa que todo hétero no fundo é gay.

Achei que o meu Pandinha ia me defender, mas ele ficou rindo, como se concordasse. Fui embora incomodado, um pouco ofendido. Não houve briga. Mas a vida foi nos levando para caminhos diferentes.

Depois de 15 anos, na semana passada, nos reencontramos no metrô por acaso. Trocamos alguns clichês sobre a chacina em Paris enquanto nos olhávamos com aquele misto de familiaridade e estranheza típica de quem já foi muito íntimo e não se reconhece mais. Dissemos um "tchau" carinhoso e ele desceu do trem. Vi ele desaparecer na plataforma de Baker Street inundado por um enorme amor.

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