Uma jovem mulher vai até a casa de Ronald H. Paquin, que havia sido padre na região de Boston nas últimas cinco décadas. Bate à porta, apresenta-se como jornalista e pergunta, à queima-roupa: "Você abusou de meninos?"

Boquiaberta, escuta a resposta do homem de 70 e poucos anos. "Eu dei uma brincada. Mas nunca estuprei ninguém. Nem tirava prazer daquilo."

	Desiree Navarro
	Sacha Pfeiffer fala sobre a apuração que revelou escândalo de pedofilia na igreja católica em Boston

O momento da maior guinada profissional de Sacha Pfeiffer pode parecer ficção quando visto em "Spotlight - Segredos Revelados", que estreia no Brasil em 7 janeiro de 2016. O longa narra como uma equipe do jornal "The Boston Globe" expôs que a Igreja Católica acobertara dezenas de padres pedófilos por anos. Mas foi exatamente assim que ocorreu, garante a própria.

"Ele abriu a porta e me contou que tinha abusado de dezenas de garotos, assim, em pé, na soleira", diz Pfeiffer, 44.

A primeira reportagem, com a frase do padre, saiu no início de 2002, e consumiu muito tempo da vida da equipe do "Spotlight", um enxuto grupo de repórteres com carta branca para se debruçar sobre grandes temas por meses, se necessário.

O trabalho dos jornalistas levou quase um ano entre enormes planilhas com documentos da era pré-internet, ouvir um sem-número de vítimas narrarem os abusos em detalhes e encontrar fontes que se dispusessem a compartilhar informações sigilosas. A série ganhou o Pulitzer, prêmio maior do jornalismo, e levou o papa Bento 16 a tomar providências que, se narradas aqui, configurariam um spoiler do filme. No último dia 10, o longa teve indicações para o Globo de Ouro nas categorias diretor, roteiro e filme/drama.

O elenco, com Rachel McAdams, Liev Schreiber e Mark Ruffalo, e capitaneado por Michael Keaton, é aventado para indicações ao Oscar por suas interpretações dos repórteres que só pensam no furo —jargão para informação exclusiva e relevante socialmente.

Os clichês estão lá: temperamentos tempestivos, baldes de café, vidas pessoais que se resumem a ir para casa e se desculpar com o cônjuge pela ausência longa e um uso farto de calças cáqui por todas as pessoas da redação. "É tudo verdade", ri ela. "Eu nunca achei que fosse uma rotina que desse um filme interessante". Mas deu.

O filme a retrata como a única mulher da equipe investigativa, e uma das poucas a figurar na redação do diário. "Não considero um ambiente sexista. Se parar para pensar, 25% dos membros do 'Spotlight' eram mulheres, mesmo eu sendo só uma. Esse número depois aumentou para a metade", diz ela, que hoje faz reportagens sobre responsabilidade social e cultura corporativa.

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MAIS REAL QUE A FICÇÃO
Acostumada com fatos, Sacha teve bastante tempo para aprender os meandros da ficção. Os produtores se aproximaram da equipe em 2008, com a ideia de fazer um filme. "Admito que, no começo, estava relutante. Afinal, sou uma pessoa desconfiada profissionalmente."

Foram quatro anos de conversas eventuais até que, em 2012, os dois roteiristas viajaram para Boston para horas de entrevistas com todos os envolvidos na história.

"Fico impressionada com o quanto eles trabalham para serem bons." Por exemplo: passavam uma hora e meia conversando sobre o tamanho das unhas na época, se a bolsa que ela usaria seria preta ou marrom, se digitava enquanto falava ao telefone ou se anotava as informações no bloquinho.

Um dia, recebeu uma ligação avisando que haviam escalado alguém para dar vida a ela. O telefone tocou minutos depois. Era Rachel McAdams. Sacha ficou surpresa com a atriz canadense de 37 anos, que tem investido em papéis sérios depois de ganhar fama com comédias açucaradas. McAdams sabia imitar o tom apressado que Pfeiffer usava na "NPR", rádio pública onde trabalhou entre duas passagens pelo diário de Boston.

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"Ela me convidou para um encontro. Propus que a gente fosse andar", diz a jornalista, adepta da corrida, do trekking e da bicicleta. Às vezes, enquanto Sacha ia à frente, Rachel ficava para trás. E não era por falta de pique. "Ela estava analisando minha charla, o jeito como ando. Depois, soube reproduzir. É impressionante", diz a repórter.

Agora, resta a ela só aproveitar momentos que ainda considera surreais, como ser convidada para ir ao MoMA com o ator Stanley Tucci. Não que o estrelato seja só curtição. "Fazia quase dez dias que eu estava em turnê [dando entrevistas] e não via minha casa. Que saudade da máquina de lavar", brinca Sacha.

"Não sei exatamente como é no Brasil, mas aqui o jornalismo está num mau momento. Espero que o filme sirva para dar um ânimo ao setor." Até certo ponto, é o que parece ter acontecido.

A série, de 2002, está entre as mais lidas no site do jornal 12 anos depois. "Tomara que esse furdunço sirva para as pessoas se lembrarem de como é importante ter alguém para bater à porta e fazer perguntas."