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Serafina

Bestial por um lado, gourmet de outro, um retrato do Brasil de nossos tempos

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Enquanto o país sai às ruas se convulsionando como uma besta histérica, refugio-me para escrever estas palavras na temakeria da praça de alimentação do Capim Dourado Shopping, em Palmas, capital do Estado de Tocantins.

O nome da moça do caixa, escrito em um crachá, é Dhayanne. Ela tem aparelho nos dentes e cabelo alisado com escova progressiva. Dhayanne explica que o enrolado Super Hot Philadelphia é empanado e leva cream cheese, alho-poró e camarão. Pergunta se eu tenho o cartão de fidelidade da rede Sushi-Man e diz que a garçonete "vai estar levando" meu pedido à mesa.

Caco Neves

Eu poderia estar em Caruaru ou em Caxias do Sul: não faria a menor diferença. Do Shopping Oiapoque ao Chuí Esplanada Center, o mesmo cenário se repete, uniforme e continuamente.

Na verdade, com poucos retoques e troca de nomes de algumas franquias, poderíamos também estar em Lahore, no Paquistão, ou Novosibirsk, na Sibéria.

Estou em Tocantins filmando "O Nome da Morte", que conta a vida e as mortes de Júlio Santana, 65, um pistoleiro que matou 492 pessoas. Júlio é maranhense e começou a matar aos 17. Matou gente pelo Brasil. Mulheres ciumentas, maridos traidores e inquilinos chatos.

Mas também matou prefeitos, líderes sindicais e ativistas indígenas. Foi muitas vezes contratado pela polícia para matar. Talvez por isso nunca tenha sido preso ou julgado e não tem medo de emprestar o próprio nome ao livro e ao filme.

No nosso filme, que atualiza a trama, ele é interpretado por Marco Pigossi e entra na pistolagem para poder se sentar com sua família no domingo à tarde, em uma dessas praças de alimentação, e ir ao cinema depois.

Um leitor menos paciente pode –com toda razão, admito– se irritar com o aparente nonsense deste texto. O que têm a ver as manifestações dos últimos dias com a receita de temaki do shopping e a violência que assola o país?

Reescrevi pelo menos nove vezes este parágrafo sem conseguir matar minha própria charada, até receber uma mensagem da editora me salvando. Ela dizia: "Duvido que todo mundo saiba que cream cheese no temaki seja estranho, inclusive porque não é muito novo e se enraizou. Deve ter muita gente por aí que veio conheceu comida japonesa já com o advento do cream cheese".

Talvez eu possa ser perdoado pela dificuldade que tenho em me explicar.

O Brasil me confunde. É que, no país onde Eduardo Cunha preside a Câmara dos Deputados, que julgará o impeachment de Dilma Rousseff (com Paulo Maluf na comissão), o mesmo onde a polícia mata, em média, oito pessoas por dia (segundo a 9ª edição do Anuário de Segurança Pública), a boçalidade impune de um enrolado com cream cheese empanado parece uma boa metáfora do absurdo deste momento histórico.

Como se diz em inglês, "We are what we eat" (somos o que comemos).

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