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Serafina

Jovens arquitetos reinventam seu ofício por causa da crise

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Um parque de Campinas pode ganhar uma construção que incorpora diversas vantagens da arquitetura contemporânea. Ela se chama Casa da Sustentabilidade e, no projeto, é uma estrutura térrea de vidro com rampas de madeira para admirar o parque Taquaral. Seu mirante será coberto de vegetação, as placas de energia solar prometem 60% de redução na emissão de CO2, haverá reúso da água de chuva e a estrutura metálica é reciclável.

O projeto do arquiteto paranaense Matheus Marques, 34, e seus sócios do escritório paulistano Hiperstudio foi o vencedor de um concurso promovido pela prefeitura local e que
teve o surpreendente número de 237 concorrentes. "Em tempos de crise econômica, com menos encomendas no dia-a-dia, há mais tempo para se dedicar a concursos, de virar madrugadas pensando nas melhores soluções", conta Marques.

Seu sócio Ricardo Gonçalves, 31, fala que "obra pública não precisa ser feia e as ideias não devem ser podadas". "Se você não tem mil contatos e amigos poderosos, os concursos ajudam você a montar um bom portfólio", diz.

Há muita prancheta ociosa no segundo ano consecutivo de queda no PIB brasileiro. Houve uma redução de 10% dos registros de responsabilidade técnica emitidos entre janeiro e março deste ano pelo Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU-SP) em comparação com o ano passado. "O projeto é o primeiro passo de uma obra, o que indica a situação péssima que ainda está a caminho", diz o presidente do conselho, Gilberto Belleza.

Em 2015, 140 arquitetos pediram cancelamento do registro obrigatório para exercer a profissão. De janeiro a março, quase 500 fizeram o mesmo —50 mil arquitetos trabalham no Estado.

ARQUITETURA X DECORAÇÃO

Este ano até prometia ser memorável para quem adora ver o que se constrói por aqui e pelo mundo. São Paulo teria sua Bienal de Arquitetura, receberia uma exposição sobre o melhor da arquitetura latino-americana entre 1955 e 1980, montada no ano passado pelo Museu de Arte Moderna de Nova York, o MoMA, e ainda teria a Bienal de Arquitetura Iberoamericana. De todas, só esta última está mesmo confirmada, pois tem 50% do custo patrocinado pelo governo espanhol. Seus organizadores, porém, ainda procuram patrocínio local para a outra metade.

A jovem geração que pega sua primeira recessão econômica está alargando o compasso de atuação e expandindo seus esquadros. Além de se dedicar a concursos, Marques e seus sócios dão aulas de apresentação de projetos em 3D e em pranchas para estudantes.

Vizinhos de outro jovem escritório de arquitetura, o Arkiz, eles dividem gastos e infraestrutura entre os dois pequenos conjuntos comerciais. A borracha está dando cabo de velhos dogmas da profissão. "Aprendemos na faculdade que decoração é algo menor, mas se você viaja pelo mundo, vê que arquitetos europeus passam boa parte da carreira fazendo reformas e interiores", diz Rafael Brych, 32, do Arkiz, que já trabalhou na China e nos EUA.

A arquiteta Manoela Beneti viu uma oportunidade de negócios nas milhares plaquinhas de "vende-se" já amareladas. E decidiu decorar esses imóveis para anúncios ou mesmo para visitas de possíveis clientes, além de promover pequenas reformas ou "intervenções" que permitam que eles "voltem ao páreo".

"Fico indignada ao ver apartamentos excelentes fora do mercado, enquanto tem tanta coisa nova cara e ruim", diz a arquiteta mineira, que se mudou há dois anos para São Paulo. "O olhar do arquiteto volta a ser necessário com bons imóveis que o mercado já não valoriza mais. Se a arquitetura for boa, essas construções ganham uma nova vida", diz.

OBRA VIP

O temor de que arquitetura seja serviço de luxo levou o arquiteto Rica Oliveira Lima, 26, a criar um site que ajuda a calcular o valor de pequenas reformas e de decoração. O projeto mais barato pode sair por R$ 1.150. Ele promete reorganizar a disposição dos móveis a contratar e fiscalizar pintores e eletricistas, desenhar móveis específicos e assessorar nas compras.

"Muita gente não busca arquitetos por medo dos custos. Quis criar uma forma transparente e acessível para desmistificar esse 'luxo'", diz. "Um móvel grande pode atravancar uma sala
pequena, por exemplo."

Já a arquiteta Raouda Assaf decidiu ir para o interior para achar novas oportunidades. Ela faz parte da equipe de uma startup chamada Bairro da Gente, que projeta empreendimentos que reúnam usos residenciais e comerciais com espaços públicos.

Seu primeiro grande projeto é a transformação do antigo aeroclube de Limeira, a 151 km de São Paulo, onde uma parceria público-privada pretende atrair investidores para quarteirões desenhados com o pedestre em mente, varejo nos térreos dos prédios e habitação social, com capacidade para 20 mil habitantes. "Dá para planejar as cidades médias, evitando os erros no planejamento de nossas maiores metrópoles", diz Assaf, que estudou em Santos e fez mestrado no Cairo, e trabalhou em parceria com o escritório do dinamarquês Jan Gehl. "Criar bairros com usos mistos, onde se dê para fazer coisas sem carro, já muda o paradigma."

SOBREVIVENDO A CRISES

A busca por novos negócios é um retorno ao cotidiano dos escritórios que sobreviveram a crises nos anos 1980 e 1990.

O mercado da arquitetura viveu um boom econômico que se encerrou em 2013, último ano em que o PIB brasileiro teve algum crescimento. Boa parte desse sucesso foi puxado por clientes privados —a arquitetura brasileira teve papel de figurante nas obras da Copa e da Olimpíada e mesmo em grandes obras federais, como o programa de habitação popular Minha Casa Minha Vida.

Antes, a crise financeira global de 2008 já tinha mandado arquitetos europeus e americanos ao divã, pressionando a busca por obras mais sustentáveis e de orçamentos mais modestos. "Tivemos muito virtuosismo e exageros por uma década, com a arquitetura dos europeus Rem Koolhaas e Santiago Calatrava e da iraquiana Zaha Hadid, na linha do 'posso, então faço'", explica o arquiteto Marcelo Morettin, 47, do escritório Andrade Morettin, autor da nova sede do Instituto Moreira Salles, em construção na avenida Paulista.

"Ainda estamos atrasados nessa discussão no Brasil. Vivemos a fase aguda, que só dói no bolso, mas, quando passar o susto, teremos que reagir e rever muitos conceitos, repensar processos, desde maior retorno aos investimentos até materiais mais simples."

Para o arquiteto José Armênio de Brito Cruz, 56, que pilotou a reforma e o restauro de um clássico da arquitetura paulistana, a residência Castor Delgado Perez, projetada por Rino Levi e Burle Marx em 1958, "reformas estão compensando a falta de obras novas". Esse casarão moderno na avenida Nove de Julho abriga desde o início do mês a nova sede da Galeria Luciana Brito.

"Me formei em 1982, numa das primeiras gerações a trabalhar com o espólio construído. Gerações anteriores só trabalhavam com terreno vazio", compara.

Sócio do escritório Piratininga e presidente da seção paulistana do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB), Brito Cruz lamenta a estiagem de trabalho. "O governo federal acaba de anunciar uma nova fase do Minha Casa Minha Vida, com 2 milhões de unidades populares. Se elas fossem feitas com projeto de arquitetura, teríamos trabalho para todos os arquitetos brasileiros por dois anos", calcula. "Mas apenas batem o carimbo e entregam para as empreiteiras."

Falando em projetos possíveis, a prefeitura de Campinas deve formalizar um chamamento público para uma parceria com a iniciativa privada para que a Casa da Sustentabilidade seja construída —e vire, de fato, algo mais que parte do portfólio de um jovem escritório durante a crise.

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