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Serafina

Aos 70, Alceu Valença faz filmes que, como sua música, vêm do inconsciente

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Alceu Valença vai fazer 70 anos no primeiro dia de julho, mas, em sua cabeça, o cantor e compositor pernambucano ainda não passou dos 21. Ele explica: "Tenho uma cabeça muito louca". Louca e cabeluda, como sempre.

Os longos caracóis castanhos já são precedidos por vastas raízes grisalhas e a loucura psicodélica intergaláctica dos anos 1970 aterrizou nas expressões da cultura tradicional pernambucana.

Mas também ativa e altiva como nunca. Alceu recorda a infância, projeta o futuro, conjectura a cultura, se vangloria de sua história e discorre, em geral, sobre tudo, como uma mistura de recém-formado em antropologia pronto para mudar o mundo com um artista consagrado que de fato já o revolucionou.

A altivez vem na lembrança de seu primeiro show, realizado nos idos dos anos 1950, aos quatro anos, quando foi levado pela tia ao Cine Teatro Rex, em São Bento do Una, sua cidade natal, para participar de uma espécie de concurso de calouros. Não que ele tenha sido escalado propriamente pelo seu talento musical. "Perguntaram para uma tia minha se ela conhecia alguma criança que cantasse. Ela disse que não, mas que tinha um sobrinho meio louquinho, que era capaz de cantar."

Era e não era. Alceu acabou não levando o primeiro lugar, mas foi sucesso de público. "O outro menino cantava muito bem e acabou ganhando. Eu fiquei dando cambalhotas e o povo também gostou. Eu ainda sou aquele menino que subiu no palco e perdeu o prêmio", lembra Alceu, que acabou não levando consigo nem a caixa de sabonetes oferecida ao ganhador do concurso, nem qualquer rancor em relação ao resultado. "Tudo bem. Agora eu ganho prêmio pra caramba."

Já o hipocampo privilegiado ajuda a manter a cabeça quase septuagenária excepcionalmente ativa. "Hoje em dia eu faço oito tipos diferentes de shows", conta ele, que mostra seu repertório em ocasiões que vão de blocos de Carnaval em Recife até apresentações com a Orquestra de Ouro Preto, passando por festas de São João, como a que comandará no final de julho em São Paulo, a shows acústicos. "Às vezes vou para o show sem nem saber o que vou tocar, mas quando alguém me lembra tenho o repertório inteiro na cabeça."

Mas, apesar dos 25 discos lançados -cinco dos quais com mais de um milhão de cópias vendidas- e dos hits executados à exaustão por rádios e violeiros de ocasião pelo país, a música nem sempre fez sua cabeça.

Segundo Alceu, egresso de uma família de músicos, o avô, violonista, tinha por hábito reunir parentes e amigos em grandes saraus. "Um dia fiquei ali, ouvindo aquele pessoal tocando chorinho. Peguei um pandeiro e fiquei batucando nele. Meu avô parou, olhou para mim e falou: 'Esse menino não tem jeito pra música não. Chama fulana e dá o pandeiro pra ela'."

"Aconteceu que fiquei com isso na minha cabeça, que não tenho jeito pra música, não tenho ritmo", diz. "Durante anos eu me achava o homem que não tem compasso. O homem que não tem ritmo. O homem desafinado.

"À época, o cantor tinha certeza que partilhava a sina do pai, Décio Valença, um dos poucos membros não-musicais do clã, ex-prefeito de São Bento do Una e deputado constituinte por Pernambuco. Na adolescência, em Recife, Alceu sonhava mais alto, jogando basquete pelo Náutico, clube tradicional da cidade pernambucana. Depois, se rendeu à intelectualidade. Poemas de Fernando Pessoa, filmes da Nouvelle Vague e o ingresso no curso de direito na Universidade Federal de Pernambuco.

Este último feito fez a alegria do pai. Procurador do Estado, Décio tinha medo que o filho trilhasse o caminho da música e da boemia que tantos parentes seguiram, e proibia a radiola na casa dos Valença. A proibição só foi levantada após o ingresso do filho na faculdade. Ganhou de prêmio uma radiola.

Não que ele tenha dado muita bola ao mimo. "Quem comprava os discos era a minha irmã. Eu preferia gastar meu dinheiro com um chopinho."

Ao longo de todos esses anos, contudo, a música vinha sussurrando no ouvido de Alceu. E ele escutava seus sinais. Hoje, o cantor reproduz imitações impressionantes de cantores da era do rádio, que escutava em São Bento do Una. Orlando Silva, Nelson Gonçalves, Cauby Peixoto e até Dalva de Oliveira têm suas canções entoadas a plenos pulmões pelo pernambucano. "Me acostumei a ouvir música no rádio."

Um tal de tio Rinaldo, espécie de "mentor intelectual" de Alceu em Recife, foi quem despertou o músico. Musical como a maior parte da família, apresentava um chorinho ao sobrinho, quando ele escreveu uma letra para a composição na hora. "Ia escrevendo e o Rinaldo me falava: 'Fecha esses olhinhos que tá parecendo o Chico Xavier escrevendo. Tá recebendo espírito, rapaz?'."

Marcus Steinmeyer
O cantor Alceu Valença, em sua casa em SP
O cantor Alceu Valença, em sua casa em São Paulo

ESCRITA EM TRANSE

Para Alceu, essa espécie de "escrita em transe" é uma constante em sua carreira. Foi assim que surgiram clássicos como "Anunciação" e "Morena Tropicana", entre outras. E o resto é história. Que ainda não acabou. Após a morte do pai, em 1999, Alceu entrou em "uns delírios maravilhosos".

Passou a escrever compulsivamente, sem saber o que escrevia. Quinze anos depois, nasceu um filme, "A Luneta do Tempo", um musical sobre cangaço e folclore nordestino dirigido pelo músico, que estreou no Festival de Gramado levando os prêmios de melhor direção de arte e trilha musical, composta pelo próprio Alceu. O filme estreia no circuito comercial paulista no dia 30/06, com exibições no CineSesc.

Dois dias antes da entrevista para a Serafina, no começo de junho, Alceu pegou um táxi. "Veio na minha cabeça a vontade de fazer outro filme. Não estava com vontade, mas me deu", conta, antes de elencar os escritos. "Cidade do interior, imagens, São Bento do Una, lembranças. TV anuncia atrações, protesto em frente a prefeitura a mandado de Ciro Blanco, padre sertanejo, entrevista, diálogo, ônibus, papapapá."

Sabe-se lá o que a sétima arte sussurra no ouvido de Alceu.

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