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Serafina

Perdido no Himalaia, Butão tem de 'fast food' turístico a complexidade cultural

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Pema não parece muito feliz ao me receber no saguão do Aeroporto Internacional de Paro, construído em 1983 e o único do tipo no Butão.

O prédio lembra uma rodoviária interiorana, servida por duas empresas regulares que topam ziguezaguear seus Airbus de forma aterrorizante por um vale no Himalaia. Ao menos a vista em voo inclui o todo-poderoso Everest.

Por que diabos meu guia, um jovem atarracado nascido em 1985, não sorri, sendo que o último reino budista da região é o lugar onde oficialmente a
Felicidade Interna Bruta se sobrepõe aos números frios do PIB?

O estereótipo escamoteia verdades. É uma cultura única imersa em mantras, teocracia que virou monarquia parlamentarista por vontade do rei em 2008, e o arco e flecha é mesmo o esporte nacional.

Ao longo dos dias, Pema se mostrou mais descontraído. E o mistério do seu sorriso ausente foi explicado: era vergonha pelos dentes reduzidos a ruínas avermelhadas, cortesia por aderir ao vício nacional de mascar "doma".

A castanha é envolta por uma folha com pasta de cal, mascada por horas e cuspida, deixando manchas vermelhas por chãos e paredes, além do desgaste dentário e hálito pungente. "Você quer?"

O gosto é medonho, entre ácido e amargo, mas os butaneses estão atrás do mix de entorpecimento e leve euforia que o negócio provoca, à moda do uso de folhas de coca andinas para combater a fadiga quando se está na montanha.

E o que não falta no Butão é morro. O trek que fiz, o Jhomolhari, é o mais popular e leva o incauto a passos com até 5.800 metros. Sem a superlotação de bloco carnavalesco das trilhas no Nepal, a falta do Everest é compensada por visuais de beleza mesmerizadora: montanhas, lagos, glaciares, florestas. E silêncio, sem celular ou wi-fi por seis dias.

As noites são em barracas sob nevasca, com a eventual presença dos nem sempre corteses cães pastores de iaques. "Não saia para nada", me disse Pema ao fornecer uma garrafa vazia, que ficou intacta enquanto minha expiração criava estalactites de gelo na tenda e a cachorrada se estranhava lá fora.

As trilhas simbolizam o isolamento do país, pouco menor que o Estado do Rio e tão populoso como o Amapá, com 760 mil almas. As estradas chegaram nos anos 60 e os turistas, em 1974.

A televisão só chegou no inacreditável 1999, assim como a internet, e as coisas começaram a andar mais rapidamente no país que não tem nenhum semáforo.

O tal PIB risonho foi idealizado pelo rei em 1972, e as sondagens se estendem por quatro pilares (felicidade, conservação da tradição, cuidado ambiental, e satisfação com o governo). Elas ocorreram em 2006, 2010 e 2015.

No último, 93% se disseram entre "algo" e "profundamente" felizes.

TODO MUNDO TÁ FELIZ

"Há coisas boas aqui, mas somos muito pobres. Então, eu sou feliz, mas não sei se seria mais se fosse para a Índia", diz Pema após algumas aguardentes.

O vizinho ao sul é o maior parceiro comercial, comprando a energia hidrelétrica que responde por 42% das exportações locais e fornecendo cigarros contrabandeados a US$ 2 o maço -o Butão proibiu o fumo público e a venda, a não ser em entregas domésticas, em 2010.

O idílio entre os países é embaçado pelo tratamento aos hinduístas, que desfaz qualquer crença ocidental de que todo budista é pacífico.

Nos anos 90, os nepaleses que seguem o hinduísmo, então um quinto da população, foram expulsa e hoje moram entre campos imundos no Nepal e os EUA. Quem ficou não tem direitos civis plenos, assim como 2,8% de cristãos.

Soa menos pitoresca e mais sombria a obrigatoriedade do uso de trajes típicos locais nos prédios públicos.

Nas ruas, o cenário é mais variado, com robes monásticos vermelhos dividindo espaço com os trajes e roupas ocidentais, num mar de smartphones indianos.

Todos os butaneses que abordei foram gentis e curiosos sobre a presença de um brasileiro entre os cerca de 130 mil turistas anuais do país, número irrisório estimulado pela fama de destino caro: é necessário comprar um pacote e pagar o mínimo de US$ 250 diários para custear sua estada no país.

É impossível não ser recebido com chá e algum quitute, sempre na presença da mais perene herança do santo budista favorito de todos, Drukpa Kinley (1455-1529): o pênis do monge, pintado ao lado de portas de entrada, às vezes em plena fúria orgástica, outras ornado com lenços e até como o proverbial "caralho com asas" -e olhos.

O "Divino Louco", como é conhecido, teria espantado demônios com seu "trovão mágico da sabedoria", entre outros feitos. O dito-cujo é desenhado com o mesmo fim hoje, e em seu monastério mulheres fazem fila para serem abençoadas com o dom da fertilidade.

O governo só inaugura uma obra se o astrólogo oficial disser que é auspicioso. Assim, o Butão é satisfatório para quem quer fast-food turístico ou complexidade cultural. É garantia de umami, o senso da saciedade tão caro à culinária japonesa, obtido seja com o glutamato monossódico do parque temático humano ou com o equilíbrio entrevisto na felicidade sem sorrisos de Pema.

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