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Análise: Somos ciborgues há dezenas de milhares de anos
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HÉLIO SCHWARTSMAN
ARTICULISTA DA FOLHA
Ciborgues, mentes escapando para fora do cérebro. Esses termos, empregados por Amber Case, são praticamente um convite a discutir o que a filosofia chama de problema mente-corpo.
Como conciliar espírito e matéria? Percebemos nossos pensamentos como algo qualitativamente distinto dos fenômenos corpóreos dos quais eles parecem depender. Mais ainda, se admitimos que a ideias são imateriais, como explicar que minha decisão de pegar um copo resulte na movimentação de um objeto?
A maioria dos filósofos, seguindo os impulsos naturais da maioria da humanidade, oferece respostas dualistas ao problema, isto é, reconhece que matéria e espírito são realidades distintas por natureza, ainda que possam afetar um ao outro, por mecanismos em geral obscuros. O autor que defendeu essa teoria com mais vigor foi René Descartes (1596-1650).
A partir do século 20, entretanto, o monismo começou a ganhar força. Por essa teoria, a dicotomia não faz sentido. Nossa mente não é mais do que o amontoado de impulsos eletroquímicos produzidos por nosso corpo.
Quem defende esse ponto de vista é o neurologista português António Damásio, autor de "O Erro de Descartes". Para Damásio, é um erro imaginar que apenas a mente pensa. O corpo e as emoções desempenham um papel-chave no que chamamos de pensamento racional. Grande parte dos processos aí envolvidos ocorre em níveis que não são acessíveis à consciência, notadamente estruturas límbicas e até mesmo receptores sensórios.
Todas essas estruturas mais os módulos cerebrais ligados em rede criam uma espécie de mapa em tempo real que nos dá a sensação de que a mente é autônoma em relação ao corpo, mas isso não passa de uma ilusão. Esse modelo, que ganha cada vez mais aceitação nos meios acadêmicos, tem implicações interessantes.
O fato de estarmos nos tornando ciborgues, isto é, de usarmos tecnologia para ampliar capacidades sensoriais e mnemônicas, provavelmente não é tão importante assim. Ou, pelo menos, não é algo inédito. Afinal, há várias dezenas de milhares de anos usamos ferramentas que nos tornam mais fortes e rápidos e faz pelo cinco milênios que contamos com a escrita.
Isso não significa, é claro, que a era digital não vá alterar nossa forma de pensar. Só que o candidato mais verossímil para fazê-lo são as modificações culturais que ela engendra, não os gadgets eletrônicos que operam apenas como extensões de nossos sentidos e membros.
E a cultura, já há evidências, é capaz de produzir alterações biológicas de origem genética. O caso mais notável é o advento da criação de gado leiteiro, que levou povos pastoris a desenvolver tolerância à lactose ao longo de toda a vida.
Quais são as mudanças culturais relevantes e o que exatamente elas provocarão em nossas mentes são questões sobre as quais podemos apenas especular.
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