Descrição de chapéu The New York Times

Na Índia, o calor do verão pode em breve se tornar literalmente insuportável

Temperaturas muito altas afetam mais as finanças e saúde dos mais pobres

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Somini Sengupta
Nova Déli | The New York Times

Era uma tarde sufocante de junho, e uma mulher magérrima, chamada Rehmati, estava se apoiando com as duas mãos na mesa de um consultório médico. Ela mal conseguia se manter em pé, porque estava sofrendo de uma intensa dor de estômago.

Ela tinha viajado 26 horas de ônibus para visitar o marido, trabalhador migrante na capital da Índia. Quando chegou, a cidade estava um forno, quase 44°C na hora do almoço, e Rehmati foi ao pronto-socorro.

A médica, Reena Yadav, não sabia exatamente o motivo da doença de Rehmati, mas o problema estava claramente associado ao calor. Yadav suspeitava de uma desidratação, talvez agravada pelo jejum do ramadã. Ou talvez a causa fosse envenenamento alimentar, porque a comida estraga mais rápido quando a temperatura é muito alta.

Yadav receitou soro para Rehmati, 31, conhecida apenas por esse nome. A médica segurou na mão da paciente e lhe disse que ela ficaria bem. Rehmati se curvou inesperadamente e vomitou.

O calor extremo pode matar, como aconteceu a dezenas de pessoas no Paquistão em maio. Mas, à medida que a temperatura sobe ainda mais, em muitas das cidades já escaldantes do sul da Ásia, cientistas e economistas estão alertando sobre um perigo mais silencioso mas muito mais amplo: o calor extremo está devastando a saúde e o ganha-pão de dezenas de milhões de pessoas.

Se as emissões mundiais dos gases causadores do efeito estufa continuarem em seu ritmo atual, dizem os especialistas, os níveis de calor e umidade podem se tornar insuportáveis, especialmente entre os pobres.

O calor já está tornando essas pessoas ainda mais pobres e prejudicando sua saúde. Como o camelô de Kolkata, que tem de se agachar de cansaço, e sente náuseas. Como a mulher que vende água a turistas em Déli, e desmaia com o calor pelo menos uma vez por verão. Como os homens e mulheres que lotam prontos-socorros, se queixando de dores de cabeça e febres. Como as pessoas que trabalham ao ar livre, e ficam tão fracas e tão doentes que perdem dias de trabalho, e o pagamento relativo a eles, regularmente.

"Essas cidades se tornarão inabitáveis a menos que os governos adotem sistemas para lidar com esse fenômeno e para conscientizar as pessoas", diz Sujata Saunik, que foi funcionária de primeiro escalão do Ministério do Interior da Índia e agora é pesquisadora na escola de saúde pública da Universidade Harvard. "É um grande desafio de saúde pública."

De fato, uma análise recente das tendências climáticas em diversas das maiores cidades do sul da Ásia constatou que, se os atuais ritmos de aquecimento se mantiverem, pelo final do século as temperaturas de bulbo úmido —um indicador de calor e umidade que pode apontar para o ponto em que o corpo humano deixa de ser capaz de se resfriar— seriam tão altas que as pessoas expostas a elas por seis horas ou mais não sobreviveriam.

Em muitos lugares, o calor agrava ainda mais problemas urbanos já espinhosos, a exemplo da falta de serviços básicos como eletricidade e água.

Para a Agência Nacional de Administração de Desastres da Índia, o alarme soou quando uma onda de calor atingiu a cidade de Ahmedabad, no oeste do país e já normalmente quente, levando a temperatura local a quase 48°C, em maio de 2010.

O incidente resultou em um aumento de 43% no índice de mortalidade, ante o mesmo período em anos anteriores, de acordo com um estudo conduzido por pesquisadores de saúde pública.

Desde então, em alguns lugares da Índia os governos locais, com apoio do Conselho de Defesa dos Recursos Naturais, uma organização não governamental indiana, adotaram precauções simples. Em Ahmedabad, por exemplo, furgões bancados pela prefeitura distribuem água gratuitamente nos meses mais quentes.

Em Bhubaneswar, na costa leste da Índia, os parques ficam abertos de tarde para que as pessoas que trabalham ao ar livre possam se acomodar à sombra. Ocasionalmente, as autoridades eleitas postam dicas de segurança quanto ao calor, nas mídias sociais. Algumas cidades que derrubaram árvores para projetos de construção estão plantando substitutas.

Os dados científicos são inequivocamente preocupantes. Um relatório recente do Banco Mundial concluiu que, na região, a alta da temperatura pode rebaixar o padrão de vida de 800 milhões de pessoas.

No mundo, entre as cem cidades mais populosas em que o pico de temperatura de verão deve atingir pelo menos 35°C em 2050, de acordo com estimativas da Urban Climate Change Research Network, 24 ficam na Índia.

Rohit Magotra, diretor assistente de pesquisa integrada para ação e desenvolvimento na Iniciativa Regional do Sul da Ásia para Integração Energética, está tentando ajudar a capital indiana Déli a desenvolver um plano para responder ao novo perigo. O primeiro passo é quantificar o custo humano.

"O calor não é reportado ou é subestimado. As pessoas estão acostumadas a ele", diz Magotra. "Mas o calor mata em silêncio."

Em uma manhã escaldante de quarta-feira, com temperatura calculada em quase 44°C, ele e uma equipe de pesquisadores percorriam as ruas de um bairro de classe operária no centro de Déli, conversando com os moradores sobre o efeito do calor na vida deles.

"Só às 4h, quando a temperatura cai, conseguimos dormir", lhe disse uma mulher chamada Kamal. O marido dela, trabalhador braçal, sofreu uma insolação este ano e ficou uma semana sem trabalhar, e sem receber.

Um lojista chamado Mohammed Naeem disse que embora conseguisse se manter fresco em sua loja, no térreo de um edifício, a pressão sanguínea de seu pai subia a cada verão, porque ele mora no apartamento do piso superior.

Nas vielas estreitas do bairro, ao longo da manhã, jovens carregavam pilhas de papel para uma gráfica que opera no piso térreo de uma casa. Um alfaiate, sentado de cócoras no chão, alinhavava o terno de um cliente. Moscas pendiam do ar, como uma cortina.

Uma mulher chamada Abeeda disse a Magotra que ajudava o marido a lidar com o verão estocando tabletes de glicose, que ela sempre tem em casa. O marido dela é pintor. Mesmo que esteja nauseado e zonzo com o calor, ele sai para o trabalho todos os dias, ela diz. A família não tem como viver sem o dinheiro que ele ganha.

Em toda a cidade, trabalhadores caminhavam com os rostos protegidos por bandanas, em meio às obras de extensão de uma via expressa para atender ao número crescente de carros que circulam em Déli. O céu está enevoado de poeira.

Boca seca, náuseas, dores de cabeça, erupções cutâneas: essas são doenças cotidianas, dizem os operários de construção. E elas são tão debilitantes que eles precisam faltar ao trabalho, mais ou menos uma vez a cada dez ou 15 dias, e perdem o pagamento do dia.

Ratnesh Tihari, 42, é eletricista e diz que sente que a temperatura está aumentando a cada ano. E por que isso causaria surpresa? Ele aponta com o queixo para a extensão da via expressa que está ajudando a construir. "É um fato. Quando você constrói uma estrada, corta árvores", ele diz. "Isso faz a temperatura subir."

A Organização Internacional do Trabalho estima que, em 2030, o calor extremo pode levar a perdas de US$ 2 trilhões (cerca de R$ 7,6 trilhões) em produtividade da mão de obra.

O índice de calor de Déli, que leva em conta a temperatura média e a umidade relativa, subiu acentuadamente, em 0,6°C no verão e em 0,55°C durante a monção, a cada década, entre 1951 e 2010, de acordo com uma análise baseada em dados obtidos por 283 estações meteorológicas espalhadas pela Índia.

Algumas cidades estão começando a registrar mais calor em momentos diferentes do ano. O índice médio de calor para o período de março a maio em Hyderabad subiu em 0,69°C por década entre 1951 e 2010. Em Kolkata, uma cidade localizada em um delta fluvial no leste da Índia, onde os verões já são quentes e muito úmidos, a monção é especialmente severa: o índice de calor da cidade entre junho e setembro subiu em 0,26°C por década.

Joyashree Roy, economista da Universidade Jadavpur, em Kolkata, constatou que a maioria dos dias do verão já é quente e úmido demais para trabalho físico pesado sem equipamento de proteção, com as temperaturas de bulbo úmido excedendo em muito os limiares da maioria dos padrões internacionais de saúde ocupacional.

E mesmo assim, em uma caminhada pela cidade ao calor escaldante de junho, você verá pessoas pedalando riquixás, carregando fardos em suas cabeças, construindo torres de aço e vidro. Apenas algumas pessoas, como ela, diz Roy, estão protegidas em casas e escritórios dotados de ar condicionado.

"Quem pode, faz isso. Quem não pode, está vivendo em situação cada vez pior", afirma ela. "O custo social é elevado."

Os pesquisadores estão tentando encontrar soluções. Em Ahmedabad, fundos municipais vêm sendo usados para pintar com tinta reflexiva branca os topos de milhares de barracões dotados de telhas de zinco, para reduzir as temperaturas internas.

Em Hyderabad, um esforço semelhante está sendo testado. Um projeto-piloto concebido por uma equipe de engenheiros e urbanistas revestiu os telhados de zinco com toldos brancos. Isso reduz a temperatura no interior das edificações em pelo menos dois graus, o que basta para tornar o intolerável tolerável. Agora eles querem expandir seu experimento com telhados frios a uma área de um quilômetro quadrado da cidade, com revestimentos frios nos telhados, paredes e calçadas frias, tudo isso acompanhado pela plantação de árvores.

O maior obstáculo no momento é a falta de verbas.

Rajkiran Bilolikar, que dirigiu o experimento com tetos frios, tem interesse pessoal no projeto. Quando criança, ele visitava o avô em Hyderabad. Havia árvores espalhadas pela cidade, que era conhecida por seus jardins. Era possível caminhar pelas ruas, mesmo no verão.

Hoje professor do Administrative Staff College of India, em Hyderabad, Bilolikar não pode caminhar muito. Sua cidade esquentou. Há menos árvores. Ar-condicionados proliferaram, mas eles despejam ar quente para fora dos edifícios.

Bilolikar disse que é difícil persuadir as autoridades, e mesmo o público, a encarar com seriedade o risco do calor. Hyderabad foi sempre quente. E o calor está aumentando devagar, de modo quase imperceptível. O calor, ele diz, é um "problema oculto".

Em casa, ele decidiu não usar o ar-condicionado, mas o do vizinho soprava ar quente para dentro de seu apartamento, pelas janelas abertas. A filha de Bilolikar, que tem três anos, ficava tão encalorada que sua pele parecia quente ao toque.

Relutantemente, ele fechou as janelas e ligou o ar-condicionado.

Tradução de Paulo Migliacci

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