Portugal dá início a projeto de megarreserva marinha nos Açores

Área protegida em torno das ilhas vai preservar espécies e colocar o país na vanguarda da conservação

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Isabel Clemente
Horta (Açores)

Pequeno em terra mas gigante no mar, Portugal deu início a um ousado projeto para transformar 15% do mar dos Açores em áreas marinhas totalmente protegidas. A nova reserva somada tomará 150 mil km2 de oceano em torno das nove ilhas, um acréscimo significativo aos 50 mil km2 já protegidos.

Situado no Atlântico Norte, a 1.500 km da costa portuguesa, o arquipélago dos Açores é um hub da biodiversidade marinha. Por ali transitam espécies migratórias do Atlântico Norte e do Sul, do Mediterrâneo e de zonas tropicais, fazendo da área um raro encontro de ecossistemas. Graças às ilhas açorianas, Portugal integra o pelotão das nações com mais oceano sob sua responsabilidade, em 20º lugar.

A criação das novas reservas marinhas, portanto, tem potencial para colocar Portugal na vanguarda dos projetos de conservação do mar.

O projeto, batizado de Blue Azores, nasceu como um esforço conjunto do governo dos Açores e duas entidades privadas: a Fundação Oceano Azul, ligada ao grupo do aquário de Lisboa, e a americana Waitt Fundation, especialista em parcerias público-privadas para a sustentabilidade do mar.

“Portugal será um exemplo para a Europa e para o mundo”, declarou o presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, sobre a iniciativa, anunciada no final de fevereiro, em Horta, na ilha do Faial.

 “O desafio é grande. Vamos auxiliar o governo dos Açores a cumprir o que for necessário porque proteger o oceano é o certo a se fazer”, diz José Soares Santos, presidente da Fundação Oceano Azul.

O programa para a conservação do mar dos Açores foi deslanchado há dois anos, com uma expedição científica patrocinada pelas fundações em parceria com a National Geographic e com a participação da Universidade dos Açores e da Marinha portuguesa.

A segunda missão, em 2018, completou o trabalho que envolveu 28 pesquisadores de nove países, em mais de 600 mergulhos e 60 horas de monitoramento por veículos operados remotamente para perscrutar o oceano onde a luz do sol não chega.  A missão mapeou mais de 21 mil km2 do fundo do mar.

Entre as importantes descobertas registradas pela expedição está um campo hidrotermal a mais de 500 metros de profundidade, um local por onde aflora água aquecida rica em minerais raros. A água brota por meio de “chaminés” naturais em torno das quais proliferam microrganismos. 

 

“Esses seres não precisam da luz do sol, transformam energia química em matéria orgânica e nos dão pistas sobre a origem da vida”, explica o biólogo Emanuel Gonçalves, da Fundação Oceano Azul.

Trata-se de um patrimônio tão importante que um outro campo termal, batizado de Rainbow, e encontrado há pouco mais de uma década fora do mar português acabou acrescentando mais oceano à jurisdição de Portugal. A zona, localizada para além das 200 milhas que delimitam a zona econômica exclusiva de Portugal, passou a integrar o Parque Marinho dos Açores, mesmo estando fora do mar português —era, então, um caso único no mundo.

O arquipélago de Açores tem origem vulcânica e está fincado sobre o encontro de três placas tectônicas, onde cordilheiras submarinas e vulcões compõem um paraíso exótico no fundo e fora do mar. Prados muito verdes em contraste com o mar de azul profundo atraem milhares de turistas e velejadores todos os anos. A observação de baleias é das atividades mais difundidas para o turismo local, onde mais de 20 espécies já foram identificadas. 

Os oceanos regulam a temperatura do planeta, fornecem oxigênio, alimento, energia e guardam um patrimônio incalculável de biodiversidade, mas continuam cada vez mais expostos à pesca sem controle, à poluição, às alterações climáticas, à destruição do ecossistema litorâneo e a todas as consequências negativas desse desequilíbrio. Os biólogos da segunda expedição científica nos Açores encontraram menos predadores pelo caminho, um sinal preocupante, já que eles aparecem onde o alimento é abundante. 

Por isso, proteger zonas onde as espécies se reproduzem e se alimentam tornou-se crucial, segundo Emanuel Gonçalves. A ação freia a pesca e, ao mesmo tempo, favorece a atividade, elevando a quantidade de peixes disponíveis. Os montes submarinos são, por esse motivo, locais a serem preservados. Como ilhas submersas, são uma espécie de grande refeitório da fauna marinha. Convencer a comunidade pesqueira de que alguns desses hotspots da pesca precisam ser poupados é um dos desafios pela frente.

“O setor não está preparado para limitar tanto a pesca”, disse o presidente da Federação das Pescas dos Açores, Gualberto Costa Rita, que representa 3.000 pescadores. 

Para o secretario Regional do Mar, Ciência e Tecnologia, Gui Menezes, o conhecimento acumulado de outras experiências de restrição da pesca fornece argumentos fortes o bastante para que a negociação com os pescadores seja tranquila. “É conhecido o benefício das reservas marinhas para a pesca. Temos exemplos aqui de montes submarinos fechados para pesquisa”, diz. 

Sem a intervenção de redes e anzóis, os pesquisadores conseguiram descobrir o tempo que determinadas espécies levam para se recuperar e reproduzir. Constataram também aumento dessas populações, uma notícia mais do que necessária para os portugueses, os terceiros maiores consumidores de peixes do mundo, segundo dados do Joint Research Centre, braço de pesquisas da União Europeia.

Várias medidas restritivas da pesca vêm sendo adotadas nos Açores nos últimos anos. Talvez a mais significativa tenha sido a que resultou de uma batalha jurídica de Portugal contra as regras da União Europeia. Ao aderir ao bloco, nos anos 1980, o país passou a comungar de seu mar com os demais integrantes. Frotas de qualquer outro país podiam vir pescar no mar açoriano sem restrições. 

Há 15 anos isso mudou. Autoridades e comunidade científica conseguiram provar que o ecossistema era delicado demais para aguentar tamanha exploração. Desde então, apenas barcos portugueses podem pescar num raio até 100 milhas da costa. Ficaram proibidas também as redes de arrasto, que levam tudo pelo caminho.

“Se não tivesse havido essas proibições, hoje já não teríamos peixe”, afirma Gui Menezes, biólogo e profundo conhecedor da região. O problema é que parte importante da zona econômica exclusiva portuguesa continua sendo compartilhada com os demais integrantes da União Europeia. Portugal tentou impedir o assédio de barcos estrangeiros dentro das 200 milhas, mas não conseguiu. Com as novas reservas, mudará também esse cenário porque elas serão soberanas e valerão para todos.

Portugal tem pequenas reservas costeiras, que garantem um nível de proteção baixa das águas territoriais. Esse é um modelo, aliás, que prevalece no planeta. Quase metade das reservas existentes no mundo tem menos de 10 km2, segundo o Atlas da Proteção Marinha, um projeto do Instituto da Conservação Marinha. Cerca de 4,8% do oceano global está protegido de alguma forma, sendo que apenas 2% são consideradas zonas totalmente preservadas.

O desafio de Portugal para os próximos três anos é implementar as novas áreas de proteção, com base em estudos técnicos que definirão os locais e as espécies mais frágeis, as regras e respectivas punições. Será uma façanha e tanto colocar sob uma redoma de preservação 20% da zona econômica exclusiva.

Poucos países no mundo protegem tanto o oceano pelo qual são banhados. O Brasil, por exemplo, está muito longe disso. Aparece com 1% de sua imensa região marinha protegida, ou 42 mil km2, de acordo com o Atlas Mundial da Proteção Marinha.

“Não será nada fácil”, disse o presidente do governo regional dos Açores, Vasco Cordeiro. “Mas estamos prontos a embarcar nesta aventura.”


Pequeno em terra, gigante no mar (titulo)

Tamanho de Portugal (território)
92 mil km2
110º no mundo

Tamanho do mar português
1,7 milhão km2
20º no mundo

Novas áreas marinhas a serem preservadas
150 mil km2 = 15% do mar dos Açores

Percentual das áreas marinhas já preservadas no mar Açoriano 
5%

Áreas marinhas protegidas no mundo 
4,8% dos oceanos
Das quais, com proteção total: 2,2%

Fonte: Governo Regional dos Açores/ Atlas da Proteção Marítima.

A repórter viajou aos Açores a convite da Fundação Oceano Azul

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