Angra dos Reis rejeita ideia de criar uma 'Cancún brasileira'

Empresários e prefeitura, porém, defendem flexibilização de regras de exploração

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Tarituba, na região de Angra dos Reis, que o presidente Jair Bolsonaro quer transformar em 'Cancún brasileira' Zanone Fraissat/Folhapress

Angra dos Reis e Paraty (RJ)

As centenas de barcos ancorados e os ônibus de turistas que chegam às margens do centro de Angra dos Reis todos os dias quase fazem esquecer que, a alguns quilômetros dali, ainda existem 29 pequenas ilhas paradisíacas praticamente intocadas.

Trata-se da estação ecológica de Tamoios (Esec), área federal de proteção ambiental criada em 1990, no litoral sul do RJ, e agora objeto de desejo do presidente Jair Bolsonaro, que defende o fim das restrições para estimular o turismo e criar o que tem chamado de “Cancún brasileira”.

A ideia de extinguir a Esec, no entanto, é rejeitada por diversos setores da região com quem a Folha conversou. Empresários do setor, pescadores, ambientalistas, a prefeitura de Angra, o Ministério Público Federal e até o governador fluminense Wilson Witzel (PSC) reconhecem que a natureza e o turismo sustentável são justamente os maiores atrativos do lugar e poderiam ser prejudicados sem a área de proteção.

A estação ecológica também é considerada essencial para que o país cumpra o compromisso internacional de preservação que firmou recentemente, quando Paraty e a Baía da Ilha Grande receberam o título de patrimônio natural e cultural da humanidade pela Unesco.

Por outro lado, parte dos empresários, pescadores e a Prefeitura reclamam da rigidez do decreto que criou a Esec e defendem que as regras sejam flexibilizadas. Eles também veem com bons olhos os holofotes que o presidente tem dado ao local, que podem levar a mais investimentos e visitantes.

“Nós queremos abrir aquela região para que a iniciativa privada desenvolva o turismo lá. O que precisaria fazer? A primeira coisa é revogar o decreto que demarcou a estação ecológica. Isso não tem problema nenhum”, declarou Bolsonaro em maio, numa das vezes em que trouxe o assunto à tona.

Tempos depois ele corrigiu a informação, admitindo que dependeria do Congresso Nacional para isso, que não tem até aqui um projeto de lei sobre o tema. Ao jornal O Globo na última terça (30), ele disse que investidores de Emirados Árabes, Japão e Israel já teriam demonstrado interesse em colocar bilhões na área, sem especificá-los.

Não é a primeira vez que se discutem propostas parecidas para a região. Dois projetos de lei tentaram liberar a pesca artesanal em 2012, mas foram rejeitados pela comissão de meio ambiente da Câmara três anos depois por contrariarem outra lei de conservação.

Em 2016, o governo de Fernando Pezão (MDB) também chegou a lançar um projeto de parceria público-privada (PPP) prevendo cobrança para entrar na Ilha Grande —o destino mais comum de Angra—, porém ele foi suspenso após ser rechaçado por organizações civis locais.

A ligação de Bolsonaro com a região é antiga. O presidente tem um sobrado na pequena Vila Histórica de Mambucaba, a 50 km do centro de Angra. Da praia, é possível ver duas das ilhas que fazem parte da estação ecológica, uma delas a só 1 km de distância.

É exatamente nesse raio envolta das ilhotas protegidas que a Esec proíbe pesca, visitação, ancoragem de barcos e construções. E foi perto dali que o então deputado federal foi multado pelo Ibama em 2012 por pesca ilegal. Ele diz em um vídeo que desde então não vai mais à casa.

A multa foi anulada dez dias antes de Bolsonaro assumir a presidência —decisão que está sendo investigada pelo Ministério Público Federal— e o fiscal que o autuou, José Augusto Morelli, foi exonerado de um cargo de chefia no Ibama em março deste ano.

Nas falas sobre o tema, porém, o presidente não detalha que a Esec Tamoios abrange apenas 6% da área da Baía da Ilha Grande e 15% das mais de 180 ilhas espalhadas pela região, parte delas já exploradas para atividades de turismo. É basicamente mar, e não terra.

O ex-presidente José Sarney decretou a sua criação por causa da construção das usinas nucleares Angra 1 e 2, seguindo exigências de um outro decreto, de 1980. A água e os ilhotes, cobertos por mata atlântica, são um termômetro da biodiversidade e dos impactos dessa indústria.

O ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade), que gere a unidade, também atua no licenciamento de empreendimentos, no combate à pesca industrial (de camarão, sardinha e robalo, por exemplo) e no controle de pragas como o coral-sol, que mata espécies nativas.

É pelas próprias características físicas da baía que a comparação com Cancún não faz sentido para quem conhece a região. A cidade mexicana é famosa pela agitada vida noturna e pelos resorts “all inclusive” que dominam uma longa faixa de areia com águas claras.

“São extremamente distintas. Cancún é planície, pega um trecho extenso do mar. Já Angra tem uma parcela de terra estreita e densamente ocupada, não tem como construir prédios ali. As pessoas vão para lá justamente porque não se parece com Cancún”, diz Morelli, o fiscal do Ibama que multou Bolsonaro e trabalhou por oito anos no local.

O forte da região de Angra é principalmente o turismo náutico e de veraneio, com casas luxuosas como as de Luciano Huck e Neymar, não raro com problemas de regulamentação ambiental. A cidade não comporta mais do que dois cruzeiros em um mesmo dia, um no continente e um na Ilha Grande.

Angra recebeu 216 mil visitantes em ônibus e vans em 2018 (600 por dia), com média de ocupação nos hotéis e pousadas de 42%. Para se ter uma ideia, Cancún hospedou mais de 6 milhões só entre estrangeiros no ano anterior (16 mil por dia), segundo o Global Destination Cities Index.

“Acho que Bolsonaro cita Cancún como sinônimo de uma cidade que respira turismo. Quando vejo ele falar isso não é construir prédio, é investir em infraestrutura”, diz João Willy, presidente da TurisAngra, fundação que faz o papel de secretaria de turismo.

A prefeitura defende a manutenção da área de preservação, mas com mudanças que permitam uma exploração turística responsável, como mergulho. O entendimento é de que a proibição atual pune o bom investimento em prol dos serviços irregulares.

É a mesma posição da associação de empresários locais do setor: “O hotel Vila Galé [um ‘ecoresort’], por exemplo, perdeu seu píer porque ele ficava na área da Esec, mas depois que o tiraram encheu de caiaque e lancha informal na praia. Por que esse raio de 1 km exatamente?”, questiona Ulisses Covas, presidente da Angra Convention e Visitors Bureau.

A pequena comunidade caiçara de Tarituba, a 64 km do centro de Angra, é outra que critica a fiscalização rigorosa da Esec aos pescadores. Vivendo há cem anos da pesca artesanal, desde 2017 eles são os únicos que têm autorização para a atividade em parte da estação, com algumas restrições, depois de uma década lutando por um acordo.

“É lei, mas quem fez a lei não conhece a realidade. Às vezes o peixe está num outro lugar e temos que ir, nos arriscamos a levar multa. Agora, o barco do empresário pode? É preciso tratar o pescador da mesma forma que todos”, diz o pescador aposentado Ismael Bulhões, 73, na beira da praia.

Apesar da reclamação dos caiçaras, os órgãos de fiscalização têm atuado com condições aquém do ideal.
O ICMBio tem duas lanchas e cinco fiscais que fazem em média uma saída por semana, além de operações maiores com outros órgãos como Polícia Federal, Marinha e Ibama. Este último, por sua vez, tem apenas três funcionários e hoje está sem sede, interditada, com risco de desabar.

A reportagem procurou o ICMBio, o Ibama e o Ministério do Meio Ambiente para tirar dúvidas sobre os planos para a região, mas não obteve resposta. Desde o início do governo Bolsonaro, o ministério desautorizou os órgãos ambientais a manter contato direto com a imprensa.

A prefeitura e empresários elencam uma série de investimentos necessários para desenvolver o turismo ali. Entre eles estão a duplicação da rodovia Rio-Santos, ampliação do aeroporto, revitalização do centro, reativação de um trem turístico, contenção de encostas e melhoria no saneamento e abastecimento de água.

Angra passa por um outro problema nos últimos anos: o domínio de facções criminosas nas favelas. Em 2018, a cidade teve um pico de tiroteios, homicídios e mortes pela polícia com a guerra entre dois grupos, chegando a decretar estado de emergência.

A violência não atinge as áreas turísticas diretamente, diz o presidente da TurisAngra, mas acaba afastando o visitante. “A violência da capital do Rio, que é a nossa principal porta de entrada, já nos atrapalha.” Neste ano os índices voltaram a cair após uma série de ações do governo estadual e da prefeitura.

Willy diz que o município foi procurado pelo Ministério do Turismo e encaminhou os projetos que acha importantes. Questionada sobre as medidas previstas, porém, a pasta respondeu apenas que “a ideia é fazer do local um dos maiores polos turísticos do Brasil para garantir o crescimento econômico, preservando a fauna e a flora”.

O ex-prefeito de Angra Luiz Sérgio Nóbrega, que já foi deputado federal (PT-RJ) e ministro da Pesca (Dilma), resume o imbróglio na região em duas frases: “O reconhecimento da Unesco abre uma janela de oportunidades, mas o lugar só recebeu esse prêmio pela riqueza ambiental e cultural que existe ali. O desenvolvimento turístico precisa conciliar todos esses fatores, com diálogo”, diz.

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